segunda-feira, 6 de junho de 2011

Globonews: republicanos na Inglaterra

 O repórter visivelmente tem idéias próprias do senso comum, embora esteja munido de algumas estatísticas. A entrevista, nesse sentido, é bastante esclarecedora.
Por outro lado, deve-se notar que a Inglaterra não foi "sempre" uma monarquia: em 1650 e 1660, durante o Protetorado de Cromwell, ela foi uma república.
Em todo caso, é uma entrevista interessante, instrutiva e alvissareira.
Gustavo.

"Cansamo-nos de agir
 E até de pensar cansamos;
 Só não cansamos de amar
 E nem de dizer que amamos"


(Teixeira Mendes, a partir de Augusto Comte)   http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/
http://membres.lycos.fr/clotilde/

Boa entrevista
http://www.conjur.com.br/2011-mai-06/ideias-milenio-graham-smith-ativista-antimonarquista-britanico

Ideias do Milênio

"Atração exercida pela Monarquia é uma fantasia"

Entrevista do ativista antimonarquista britânico  Graham Smith ao jornalista Silio Boccanera do programa Milênio, transmitido originalmente no dia 25 de abril pelo canal de televisão por assinatura Globo News. O Milênio vai ao ar às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo.  
O sucesso do filme O Discurso do Rei entre críticos e público desperta mais uma vez o intrigante culto à Monarquia britânica, uma instituição que fascina muitos e enfurece outros. A mistura de história, conto de fadas, celebridade e telenovela que se desenrola nas ilhas britânicas contamina também outros países, onde o público estrangeiro e criado em culturas diferentes se deixa levar também por narrativas pitorescas como a do rei gago George VI.
Antes disso, fizeram e fazem sucesso na TV o drama de um antecessor que enlouqueceu no trono e perdeu a colônia americana, rainhas virgens e poderosas, soberanas mais contemporâneas que resistem a mostrar emoção diante de tragédias ou dinastias salpicadas de ginástica de alcova. Sem esquecer das princesas gamourosas de verdade e rivais sem glamour; príncipes envelhecendo em eterna espera para herdar a coroa da coroa; ou herdeiros coroados que largam o trono para casar com a mulher amada, divorciada e estrangeira em trama digno de telenovela.
O culto à Monarquia como celebridade se agravou ainda mais, em abril, quando o príncipe William, segundo na linha do trono, se casou com a plebéia Kate Middleton. Uma cerimônia que  alcançou altos índices de audiência na TV pelo mundo em clima de conto de fadas. Nova festa está marcada para o ano que vem, quando a rainha Elizabeth II completa 60 anos no trono.
Encantam-se os fãs, irritam-se os que veem na Monarquia uma instituição obsoleta retrógrada, cara, perdulária, elitista, fútil e sobretudo antidemocrática, porque não eleita. É o caso da organização britânica Republic, que defende o fim da Monarquia e sua substituição por uma República com um chefe de estado eleito em vez de escolhido por direito hereditário. O governo executivo continuaria nas mãos do parlamento, como hoje. O principal dirigente desse grupo de pressão, Graham Smith, conversou com o Milênio em Londres.
Silio Boccanera — Lançaram mais um filme de sucesso sobre a Monarquia britânica, como tantos outros antes, e tivemos o casamento do príncipe Wiliiam. Ou seja, a febre da realeza está de volta, como já aconteceu no passado. Por que esse fascínio pela família real britânica, pelas famílias reais em geral, pela Monarquia em geral?
Graham Smith — Faz parte do imaginário. É uma coisa histórica, de conto de fadas, da Disney etc. E hoje faz parte dessa cultura de celebridades. Eles são ricos, se mostram como uma família de prestígio. E acho que eles conseguiram se separar muito bem de sua posição constitucional. Ou seja, eles evitam ser colocados no mesmo nível que os políticos. É como se fossem celebridades de alto nível. E, como nos contos de fadas, eles exercem certa atração, isso é verdade. Mas esse interesse sempre existiu, e esse interesse vem do mundo todo, seja de países republicanos ou monarquistas. Port
anto, ele nada tem a ver com ideais políticos, filosóficos ou com a visão da Monarquia em si. É apenas uma expressão cutlural ou uma ideia relacionada a contos de fadas. Uma fantasia, não algo sério.
Silio Boccanera — É claro que, para os republicanos e antimonarquistas em geral, a ideia da Monarquia parece muito antiquada, obsoleta. Mas, observando países que ainda são monarquistas, do Reino Unido à Holanda e aos países escandinavos, vemos que são países muito modernos. Não há contradições nesse aspecto.
Graham Smith — Há uma contradição, e isso é um problema. Há movimentos republicanos em todos esses países europeus. Cerca de seis meses atrás, foi criada uma aliança entre esses movimentos. Essa questão é tratada atualmente em todas as monarquias européias. E esse conflito ocorre porque somos países modernos e cosmopolitas. No entanto, temos essas instituições que tentam se impor na psique do país, na identidade nacional, de um modo que não é apropriado. E isso é especialmente forte no Reino Unido, onde ouvimos que somos um país atrasado, tradicionalista, que ama a família real e não necessaria
mente valoriza a democracia. E isso tudo vem do fato de termos essa instituição que é muito presente e que se autopromove, que continua promovendo suas ideias. Isso se choca com quem realmente somos, e é um dos motivos para querermos acabar com a Monarquia. Queremos um sistema que represente quem realmente somos, e não um que tente nos deixar presos ao passado.
Silio Boccanera — Analisando o impacto internacional da Monarquia britânica, tirando sua popularidade, o fator novela e celebridade, a rainha é chefe de Estad de alguns países da Commonwealth, formada por ex-colônias britânicas. Vários desses países a mantiveram como chefe de Estado. Ao contrário dos Estados Unidos, que abandonaram a Monarquia, vários outros países a mantiveram. Não é estranho eles terem tido chance de pôr fim a isso e não fazê-lo?
Graham Smith — A Commonwealth tem mais de 50 países, e a rainha é chefe de Estado de apenas 14 deles. A maior parte dos países da Commonwealth são repúblicas. E é justo dizer que os países mais estáveis e prósperos e que conseguiram se tornar democráticos de maneira pacífica e sem grandes problemas, não viram a necessidade de dar esse passo.
Silio Boccanera — Canadá, Austrália...
Graham Smith — Exato. Canadá, Austrália, Nova Zelândia e alguns pequenos países do Caribe. Eles são muito próximos dos Estados Unidos. Mas todos os outros países, onde foi mais difícil a transição da colônia para Estado independente, romperam definitivamente com o passado e viraram repúblicas. E há movimentos republicanos no Canadá, Austrália e Nova Zelândia. A maioria dos australianos quer o fim da Monarquia. Na Nova Zelândia, esse número é quase metade da população, dependendo da pesquisa. Mas, quando se pergunta sobre a sucessão, com Charles sendo coroado rei, o apoio ao republicanismo começa a aparecer.
Silio Boccanera — Talvez devêssemos lembrar aos espectadores que a Monarquia não é apenas a rainha, o marido dela e os príncipes, mas toda a estrutura da família real. Qual é o tamanho dela?
Graham Smith — É mais do que a família real, é a Constituição, é um sistema político. Mas, em termos da casa real, estamos falando sobre 15, 16 pessoas com o título de Sua Alteza Real, que fazem coisas como inaugurar hospitais, cortar fitas, esse tipo de coisa. E que recebem do Estado. A maioria recebe algum tipo de subsídio para viagens, moradia, essas coisas. E mais pessoas, além dessas 15, moram de graça em palácios, em casas, e por aí vai. Mas há outros além desses 15, que são todos os funcionários, pois é uma estrutura bem grande. Muitas pessoas trabalham tanto nos palácios quanto nas casas, servindo à família real.
Silio Boccanera — E quem paga por isso? O contribuinte?
Graham Smith — O contribuinte, isso. O contribuinte paga quase tudo isso. Eles tentam evitar... Há territórios chamados “ducados”, o Ducado de Lançastes e o Ducado da Cornuália, que dão dinheiro para a rainha e para o príncipe Charles. Estou falando de 10 milhões, 20 milhões de libras por ano. Então alegaram... Como recebiam dinheiro desses ducados, estavam gastando seu próprio dinheiro, mas isso ainda é dinheiro dos contribuintes, pois, sem a Monarquia, os ducados seriam propriedade do Estado. Então, todo o dinheiro que vai para a família real e que mantém a Monarquia iria para o Tesouro e para o Estado se não houvesse Monarquia.
Silio Boccanera — Você faz parte de um movimento antimonarquista. O que seria feito de todas essa pessoas? Eles teriam que trabalhar, viver como qualquer pessoa? Seria um horror!
Graham Smith — Nós somos democratas. Nós acreditamos que todos deveriam ser tratados da mesma maneira. Se nos tornarmos uma República, eles serão cidadão, como todos nós, e teriam que cuidar de si mesmos, teriam que pagar impostos, trabalhar, se precisassem, o que é improvável, pois eles são bem ricos, mesmo sem nossa ajuda. Eles poderão apenas viver para aproveitar a vida.
Silio Boccanera — Mas a rainha aqui tem um poder extraordinário, que outros monarcas não têm. Ela é chefe da Igreja.
Graham Smith — É.
Silio Boccanera — É uma função muito importante, não é? Ela está acima do arcebispo da Cantuária.
Graham Smith — Na verdade, temos uma Igreja de Estado. E nosso monarca tem um poder enorme que outros monarcas não têm. A maioria das monarquias européias tem em sua Constituição limites muito rígidos do que o monarca pode fazer. E, em vários países, como a Suécia, o monarca não pode fazer quase nada. No Reino Unido, a rainha é chefe da Igreja e nomeia todos os membros da Igreja. Mas ela também nomeia vários funcionários do Estado. Ela nomeia o primeiro-ministro e todos os ministros. E, se ela se recusar a fazê-lo, ninguém poderá fazer nada, a menos que o Parlamento faça algo.
Silio Boccanera — Não acontece na prática, mas pode acontecer.
Graham Smith — Pode e já aconteceu. Embora raro, no período moderno... Nos últimos 30, 40 anos não aconteceu muito, mas a rainha já nomeou primeiros-ministros de sua própria escolha, e isso aconteceu porque o Partido Conservador, nos anos 50 e 60, não elegeu líderes internamente. As pessoas meio que emergiram a partir de acordos nos bastidores. Então, houve dois primeiros-ministros nomeados pela rainha por indicação de pessoas que não deveriam aconselhá-la. Houve certa preocupação no partido, e por isso eles decidiram passar a eleger seu líder, para que ficasse claro quem ele seria. Mas ela pode dissolver o Parlamento, e ninguém poderia fazer nada. Ela pode demitir o primeiro-ministro e nomear outra pessoa. Ela também pode impedir a aprovação de leis. Há todas essas coisas que ela pode fazer, mas é improvável que faça. O perigo é que alguém
como Charles, na condição de rei, fique tentado a usar algum desses poderes em particular. Por exemplo, digamos que haja um governo conservador que simpatize com a Monarquia e que não faça nada errado. O monarca tem reuniões secretas privadas com o primeiro-ministro todas as semanas. Não é impossível imaginar o rei Charles dizendo a um primeiro-ministro que proponha fazer algo que ele desaprova: “Olha, posso tornar sua vida difícil, tenho poder para fazer isso, então quero que você mude essa política.” E ninguém saberia disso.
Silio Boccanera — Então, sua preocupação é que, embora as pessoas digam que a Monarquia é inofensiva, pois a rainha ou rei não tem poderes, você está dizendo que, na verdade, eles têm. A rainha escolheu não exercer esse poder, mas ele existe.
Graham Smith — Com certeza. Não estamos sugerindo que teremos uma crise, em que Charles exerça seus poderes, mas há o risco de que ele exerça sua influência. Além disso, por outro lado, o chefe de Estado tem um trabalho a fazer, e ele precisa ser capaz de aconselhar e alertar o primeiro-ministro se achar que ele está seguindo um caminho específico. Ele tem que poder tomar decisões sobre a dissolução do Parlamento se houver algum tipo de crise política. Mas não é uma função que um monarca pode ou deve desempenhar, pois não pode ser responsabilizado se tomar a decisão errada. Nós queremos alguém que possa tomar essas decisões e ser responsabilizado por elas.
Silio Boccanera — Os planos de reforma do seu grupo republicano é acabar com a Monarquia e mudar a situação atual. Mas vocês querem criar o quê?
Graham Smith — Nós queremos um Reino Unido republicano e democrático. Nós não queremos algo grandioso ou suntuoso, mas uma Constituição republicana muito direta que diga que o poder pertence ao povo, que o país é democrático e que será governado assim. Nós teremos políticos, mas o poder deles será limitado. O chefe de Estado será eleito e agirá de forma independente, protegendo a Constituição e exercendo algumas funções básicas. Queremos um chefe de Estado constitucional, não queremos o presidencialismo nos moldes que existe no Brasil ou nos Estados Unidos. Ele não teria poder político, não tomaria decisões políticas, só tomaria decisões constitucionais. Por exemplo, se o Parlamento aprovar uma lei que o presidente considere inconstitucional, o presidente
pode se recusar a promulgá-la,e a lei seria submetida a um tribunal, que a julgaria. Se o Parlamento não conseguir decidir quem será o primeiro-ministro, o presidente pode atuar como árbitro. Então, uma República bem direta, prática e pragmática, com um chefe de Estado exercendo uma função determinada.
Silio Boccanera — Então, um presidente mais como o da Alemanha, da Itália...
Graham Smith — Da República da Irlanda.
Silio Boccanera — E não como o da França, do Brasil ou Estados Unidos.
Graham Smith — Com certeza. Ele teria um papel bem simples e funcional.
Silio Boccanera — Com relação à função de chefe de Estado, como você disse, vocês preferem presidentes com poucos poderes. Aqueles que defendem a Monarquia e a rainha ou rei como chefe de Estado dizem que o fato de eles não serem ligados a nenhum partido político é algo positivo.
Graham Smith — Seria positivo se a rainha fizesse alguma coisa. Essa é a falácia desse argumento. Se ela tivesse alguma função, se pudesse atuar independentemente do primeiro-ministro, sua aparente imparcialidade seria algo positivo. Mas, como ela delega seu poder ao primeiro-ministro, isso é irrelevante, não faz diferença. Nós queremos alguém que seja não só imparcial, mas que possa ser responsabilizado por essa imparcialidade. Esse é outro ponto importante: não sabemos quão imparcial a rainha é, pois não sabemos nada sobre ela. Ela nunca dá entrevistas. Ela nunca sentaria aqui para responder a perguntas sobr
e o que fez e por que fez. E ela tem essas reuniões secretas. Por isso, não sabemos o que ela faz a portas fechadas, não sabemos o que acha sobre os partidos políticos. E não podemos responsabilizá-la se ela tomar alguma decisão errada. Mas a questão toda é que ela não se envolve, então não faz diferença se ela é imparcial ou não. Com um chefe de Estado eleito, ainda é possível ter alguém imparcial, mesmo que ele tenha uma carreira em um partido político. Nós já vemos isso com o presidente da Câmara dos Comuns. Espera-se que ele seja imparcial, e ele sempre foi imparcial. Ainda assim, eles são eleitos e pagos, servem a casa por muitos anos...
Silio Boccanera — E representam um partido.
Graham Smith — Exato. Mas, assim que se tornam presidentes, eles deixam o partido e se tornam um membro da Câmara independente. E não há por que não ter uma figura semelhante como chefe de Estado. Mas essa imparcialidade deve ser constatada, julgada, e ele deve poder ser responsabilizado.
Silio Boccanera — E o que você faria com o chefe de Estado, a rainha ou o rei Charles? A guilhotina não pode ser, a forca...
Graham Smith — Somos uma organização democrática e pacífica. Como eu disse antes, nós queremos nos libertar e libertá-los. Eles estariam livres de suas obrigações e livres para viver a vida que escolhessem, e nós seriamos livres para escolher seu sucessor.

Silio Boccanera — Onde você vê apoio para a causa republicana? Há sinais de crescimento?
Graham Smith — Eu acho que o apoio da Monarquia está diminuindo e mudando. As pessoas têm criticado mais a instituição, tem relutado um pouco mais em continuar com essa deferência. Isso não necessariamente significa que elas apóiem uma República, ainda, mas o terreno está sendo preparado para um debate sólido. Então nós vemos que há bastante espaço para construirmos uma Monarquia que apóie o que queremos. E o apoio vem de todas as vertentes políticas e sociais, de pessoas de direita, de esquerda, de centro, de todas as idades e estilos de vida. Elas consideram a ideia como uma opção válida. E isso é uma grande mudança de 30 anos atrás, quando era uma aspiração somente da esquerda. Hoje, não é assim.
Silio Boccanera — Mas o outro lado, os monarquistas, vêem republicanos como um bando de comunistas estranhos, esquerdistas, anarquistas. Vocês são tudo isso?
Graham Smith — De forma alguma. Na verdade, nós, os republicanos talvez tenhamos uma visão semelhante em relação aos monarquistas. Quando falamos de monarquistas, como um grupo, não estamos falando da maioria do país, mas de uma minoria ardente que defende a Monarquia, que participa de organizações e segue a rainha no Twitter, por exemplo, que realmente se interessa por isso. Mas eles também são uma minoria. E há uma minoria de republicanos. Há todo um grupo no meio disso que olha os dois lados e pensa: “Não sei quem devo apoiar.” E, como eu disse, eles concordam em manter a Monarquia porque nunca pensaram nos motivos para mudar o sistema. Mas, no que diz respeito aos republicanos, nós estamos em todas as vertentes políticas e sociais, e as pessoas que g
overnariam uma República seriam tão normais quanto qualquer um, são pessoas inteligentes, instruídas e profissionais que querem um país democrático.
Silio Boccanera — Você nasceu e foi criado nesta atmosfera, com todas essas tradições que você intelectualmente rejeita hoje, mas, como um cidadão britânico, como alguém com essa criação, quando pensa no ano que vem, no jubilei da rainha, que completará 60 anos de reinado, com todo tipo de comemoração, o que você vai fazer? Você vai participar?
Graham Smith — Nós estaremos em campanha, como no casamento. Faremos nossas festas nas ruas e nossas reuniões. Nós aproveitamos todas as oportunidades, pois vemos esses acontecimentos não como datas nacionais, mas da Monarquia. São eventos criados para perpetuar mitos e promover a instituição. E, com certeza, ano que vem, quando chegar o 60º aniversário, nossa mensagem principal será: por 60 anos, uma pessoa teve certeza de que seria chefe de Estado. Ela nunca nos perguntou, nunca pediu nosso voto para isso, nunca sugeriu que o povo pudesse dar sua o
pinião. E isso quer dizer que estamos mais perto de ter Charles fazendo o mesmo. E eu vou me sentar e dizer ao Charles para ir ao Palácio de Buckingham e virar chefe de Estado sem nem perguntar nada? Nós queremos essa discussão, que as pessoas escolham como será. Vamos lembrar as pessoas de que é uma instituição bizarra, que não deve se perpetuar por mais 60 anos. Como eu disse, a Monarquia sobrevive porque o povo não pensa nisso. E esses eventos grandiosos só fazem as pessoas pensarem e ajudam nossa campanha.
Silio Boccanera — Se formos além da família real britânica e pensarmos em outras monarquias, da Espanha à Escandinávia e aos países africanos, elas ainda exercem algum fascínio. Talvez não tão forte. Você acha que isso tem relação com o conceito de que há pessoas que recebem coisas por direito inato, e não por mérito próprio?
Graham Smith — Eu não sei se é isso. Mais uma vez, acho que eles exercem alguma fantasia. E acho que as pessoas que gostam e se interessam pela vida da Monarquia também entendem isso. Quando o Afeganistão se livrou do Talibã, falou-se do retorno do rei ao seu trono. Discussões semelhantes ocorreram também no Leste Europeu. Mas nenhum desses países deu esse passo, eles não restituíram a Monarquia. E acho que essa fantasia é alimentada, até certo ponto, pela frustração com os políticos plebeus, sejam eles democráticos ou não. Daí, essa ideia do cavaleiro que vem salvar o país.
Mas as pessoas percebem que isso não acontece na vida real e continua sendo uma fantasia, em vez de ser considerado como uma solução política séria.
Silio Boccanera — E a possível atração do fator que podemos chamar de ligação com o passado? É uma família com uma longa tradição, uma família muito antiga, que faz as pessoas se sentirem confortáveis, pois ela as une à sua própria história. Você acha que isso influencia?
Graham Smith — Há alguma verdade nisso. Não podemos deduzir muita coisa a partir disso. Em grande parte, isso faz parte do pacote de relações públicas da Monarquia. Eles tentam sugerir ou promover a ideia de que há essa longa ligação. É claro que a família de qualquer pessoa é antiga, e todo país tem uma história e uma tradição antigas, distintas do resto do mundo. É possível analisar outros aspectos da mesma maneira. Mas os monarquistas e as famílias reais sabem muito bem usar isso como sua própria história. Acho que existe esse aspecto, mas não podemos tirar muito significado dele.
Silio Boccanera — Uma das críticas dos republicanos à Monarquia é que a família real não deve se envolver em questões públicas nem defender posições. A rainha parece seguir essa linha, mas o príncipe Charles se envolveu em muitas controvérsias, e a última era relacionada à arquitetura moderna, que ele odeia. Fale sobre o último incidente, no qual até você esteve envolvido, protestando contra ele.
Graham Smith — Ele se envolve em várias coisas, e a arquitetura é uma das coisas nas quais se envolveu muito. Acho que você se refere...
Silio Boccanera — Chelsea.
Graham Smith — Chelsea Barracks. É um empreendimento muito grande em um terreno degradado de West London. O local está abandonado há bastante tempo, e o governo quis construir um grande empreendimento lá, que ia gerar muito dinheiro, ia empregar milhares de pessoas. Como sempre, alguns moradores se opuseram à arquitetura, e houve um processo democrático, para que o conselho local decidisse o que fazer. Mas esse processo seria demorado, colocando em risco muitos empregos. Charles usou sua influência e sua autoridade para, basicamente, pôr um ponto final em tudo. Os empreendedores tinham o apoio financeiro de famílias reais do Oriente Médio – ele falou com eles – e todo o projeto foi cancelado. E chegou a um ponto, em Londres, em que vários arquitetos passaram a mostrar o projeto ao príncipe Charles antes de construir, com medo de investir muito no empreendimento, e tê-lo cancelado porque
Charles se envolveu.
Silio Boccanera — Ele vai alem...
Graham Smith — Muito além de sua função. E ele faz isso em todos os assuntos. Ele faz lobby na área de saúde pública, ele pede que o governo gaste em tratamentos que ele defende, em vez de tratamentos convencionais. Ele faz lobby para o meio ambiente. Recentemente, ele fez um discurso contra o crescimento econômico, dizendo que ele causa danos ao meio ambiente, tanto globalmente quanto no Reino Unido. E isso é uma questão muito controversa, ainda mais quando o governo se esforça tanto para incentivar o crescimento econômico. Ele não pode fazer isso, pois não pode ser responsabilizado por suas posições.
Silio Boccanera — E haveria também todo o aspecto cerimonial disso.
Graham Smith — Certamente.
Silio Boccanera — Ele cortaria fitas por aí.
Graham Smith — Um chefe de Estado constitucional. Ele exerceria quase o mesmo papel que a rainha. Mas a diferença é que a rainha não pode ter nenhuma atuação, pois ela não pode ser responsabilizada, então ela delega seu poder ao primeiro-ministro. Ou seja, nós temos um chefe de Estado que não pode cobrar responsabilidade dos nossos políticos, porque ela delega esse poder ao primeiro-ministro. Ou seja, nós temos um chefe de Estado que não pode cobrar responsabilidade dos nossos políticos, porque ela delega esse poder ao primeiro-ministro cujo óbvio interesse é não responsabilizar os políticos. Nós queremos alguém que cumpra a Constituição e seja independente do governo.
Silio Boccanera — Alguém que equilibre melhor as coisas.
Graham Smith — Exato.
Silio Boccanera — Se analisarmos a Espanha, por exemplo, a Monarquia está associada à modernidade. O rei Juan Carlos teve uma participação política forte e evitou uma volta à ditadura. Ao pensar na Monarquia espanhola, pensamos em modernidade; ao pensar na Monarquia britânica, pensamos em algo do passado. Essa avaliação está correta?
Graham Smith — Os problemas dos países europeus são bem diferentes, e os da Espanha são diferentes dos nossos, pois sua história e sua experiência com a Monarquia são bem diferentes. Como você disse, o rei evitou um golpe de Estado que levaria à ditadura. Eles também tiveram a Guerra Civil, a República, Franco etc. Isso mudou totalmente a natureza do debate. No Reino Unido, sempre tivemos Monarquia, e, por isso, a natureza do debate é totalmente diferente. Nós temos muito mais em comum com as monarquias do norte da Europa do que com a da Espanha, que é bem diferente.
Silio Boccanera — Da Escandinávia e...
Graham Smith — Dinamarca, Holanda, Bélgica, Suécia e Noruega. Eles têm uma relação parecida com a Monarquia.
Silio Boccanera — Há sempre o fator “novela”, não é? Acompanhamos a vida dessas pessoas, de seus filhos, netos, como se acompanhássemos uma novela de televisão.
Graham Smith — Sim, mas é um fenômeno razoavelmente recente, dos últimos 20, 30 anos, desde que a família real britânica e, provavelmente, as de outros países também, começaram a ficar mais expostas aos olhos da mídia, com episódios de suas vidas privadas estampadas nas capas dos tabloides. E virou mesmo um tipo de novela. É uma faca de dois gumes, pois, quando alguém está o tempo todo nos tabloides, o interesse pela novela cresce, mas sua reputação, sua imagem, podem ser manchadas. O que eles têm feito, com exceção do casamento, é transformar essa novela numa coisa muito sem graça, meio monótona, tirando seu fascínio, pois a reação deles foi fazer o contrário. De tanto tentar evitar escândalos como os dos anos 80 e 90, eles se tornaram e
ntediantes.
Silio Boccanera — As pessoas não gostam muito de Charles... Elas respeitam e gostam da rainha, mas a ideia de Charles se tornar rei pode afastar o povo da Monarquia?
Graham Smith — Parte do apoio que a Monarquia tem está relacionada à rainha. Ela reinou durante toda a transição para a sociedade moderna, de uma época em que tínhamos muito mais respeito pela família real, em 1952, em que questionávamos menos as coisas e as aceitávamos... O Reino Unido era o Reino Unido, nada havia mudado, nós éramos daquele jeito, e assim ficamos. Então passamos por um longo período de transição, para uma democracia muito mais popular. Todos querem se pronunciar, querem ser ouvidos, querem discutir tudo e querem ter escolhas. Acho que, como a rainha reina há tanto tempo, a maioria das pessoas não lembra como era antes. Com isso, ela se tornou o fator-chave...
Silio Boccanera — Eles dizem: “Enquanto foi ela, tudo bem. Mas, se for o Charles, eu não quero.”
Graham Smith — Exato. Eles sentem um afeto pessoal por ela, e nunca viveram nada diferente. Mas, assim que se fala em mudar o monarca, as dúvidas surgem. Tanto a mudança da pessoa quanto as mudanças mais substanciais, ou a discussão do funcionamento do sistema, tudo isso suscita várias dúvidas. Quando o monarca está vivo, as pessoas não pensam nisso. As pessoas não pensam duas vezes nisso, veem como parte da vida britânica. Basta começar a falar criticamente do assunto para as opiniões começarem a variar bastante.
Silio Boccanera — Em termos de apoio do povo, ao menos no Reino Unido, as últimas pesquisas da BBC, de uns anos atrás, mostram que 76% dos britânicos querem manter a Monarquia. É um número bem alto.
Graham Smith — É uma grande maioria, sim. Cerca de 20% a 25% das pessoas querem o fim da Monarquia. São milhões de pessoas. Somos um país populoso. Mas não há um debate significativo de alto nível muito freqüente. Há várias oportunidades para isso, e vamos promover um grande debate, para aumentar esse apoio. Mas esses 76% têm uma opinião menos sólida do que se pensa. A maioria das pessoas entrevistadas acha que não devemos gastar um centavo com a Monarquia. Isso sugere que as pessoas passaram de um apoio realmente ativo a algo do tipo: “Vamos manter a Monarquia, pois não faz muita diferença para nós.”
Silio Boccanera — Mas, quando você mostra os gastos...
Graham Smith — Exato.O que se tira disso é: “Não ligo para isso, então por que acabar?” “Não ligo para isso, então por que devo sustentá-los?” Isso significa que grande parte – não todos os 76%, mas grande parte deles – simplesmente não se interessa mais pela Monarquia, o que é uma grande mudança do cenário de 20, 30 anos atrás. Isso nos dá chance de dizer por que o tema é importante e por que devemos fazer algo a respeito. E são essas pessoas que não ligam que nós queremos convencer de que é hora de mudar.
(Foto: Paulo Pimentel/Globo News)

[As partes desta mensagem que não continham texto foram removidas]


Uma foto do Brasil *

Dora Kramer

No dia 10 de maio, uma professora, Amanda Gurgel, falou em audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte meia dúzia de verdades que desenharam em parte o cenário da educação no País.
Às autoridades presentes restou o silêncio diante das palavras de uma brasileira angustiada.
As seguintes: “Durante cada fala aqui eu pensava em como organizar a minha fala. Porque são tantas as questões a serem colocadas e tantas as angústias do dia a dia de quem está em sala de aula, que eu queria pelo menos conseguir sintetizar minimamente essas angústias.
“Como as pessoas sempre apresentam muitos números e dizem que eles são irrefutáveis, eu gostaria também de apresentar um número que é composto por três algarismos apenas, bem diferentes de tantos números que são apresentados aqui com tantos algarismos: é o número do meu salário, R$ 930, com nível superior e especialização.
“Eu perguntaria a todos aqui, mas só respondam se não ficarem constrangidos, se vocês conseguiriam sobreviver ou manter o padrão de vida que vocês mantêm, com esse salário. Certamente não conseguiriam.
“Não é suficiente nem para pagar a indumentária que os senhores e as senhoras utilizam para poder frequentar esta Casa. A minha fala não poderia partir de um ponto diferente, porque só quem está em sala de aula, só quem pega três ônibus por dia para chegar a seu local de trabalho é que pode falar com propriedade.
“Fora disso, qualquer consideração aqui é apenas para mascarar uma verdade visível a todo mundo: em nenhum governo, em nenhum momento no nosso Estado, na nossa cidade, no nosso país a educação foi uma prioridade.
“Então, me preocupa muitíssimo a posição da maioria, inclusive da secretária (de Educação) Betânia Ramalho, de não falarmos sobre a situação precária porque isso todo mundo já sabe.
“Como assim, não vamos falar da situação precária? Gente, estamos aceitando a condição precária da educação como uma fatalidade?
“Estão me colocando dentro de uma sala de aula com um giz e um quadro para salvar o Brasil, é isso?
“Salas de aulas superlotadas com os alunos entrando com uma carteira na cabeça porque não têm carteiras nas salas e sou eu a redentora do País? Não tenho condições, muito menos com o salário que recebo.
“A secretária disse que não podemos ser imediatistas, que precisamos pensar a longo prazo. Mas a minha necessidade de alimentação é imediata. A minha necessidade de transporte é imediata, a necessidade dos alunos de ter uma educação de qualidade é imediata.
“Eu gostaria de pedir aos senhores que se libertem dessa concepção extremamente equivocada, e digo isso com mais propriedade do que os grandes estudiosos: parem de associar a qualidade da educação com professor dentro da sala de aula.
“Não há como ter qualidade em educação com professores trabalhando em três turnos seguidos, multiplicando seus salários: R$ 930 de manhã, R$ 930 de tarde, R$ 930 de noite para poder sobreviver. Não é para andar com bolsa de marca nem para usar perfume francês.
“É para pagar a alimentação de seus filhos, para pagar a prestação de um carro que muitas vezes compram para se locomover mais rapidamente entre uma escola e outra.
“Não me sinto constrangida de apresentar meu contracheque, porque penso que o constrangimento deve ser de vocês.
“Lamento, mas deveriam todos estar constrangidos. Entra governo e sai governo e o que se solicita de nós é paciência e tolerância.
“Quero pedir à secretária paciência também porque nós não aguentamos mais esse discurso.
“Não podemos ser responsabilizados pelo caos que na verdade só se apresenta para a sociedade quando nós estamos em greve, mas que está lá todos os dias dentro da sala de aula, em todos os lugares.
“São muitas questões mais complexas que precisariam ser postas aqui. Mas infelizmente o tempo é curto e é isso que eu gostaria de dizer em nome dos meus colegas que pegam três ônibus para chegar ao local de trabalho, em nome dos estudantes que estão sem aula agora por causa da greve, mas que ficam sem aula por muitos outros motivos.”
É isso. Embora não seja apenas isso.


* Artigo publicado no Estadão desta sexta-feira.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

SUPERINTERESSANTE

A nova História do Brasil

Uma nova geração de pesquisadores destrói mitos e revela o verdadeiro passado do Brasil: um país mais forte, mais complexo e bem mais humano do que ensinaram na escola

por Leandro Narloch*

O cenário deve estar quente na sua memória. Nos tempos em que o país era uma colônia de Portugal, só havia por aqui engenhos de cana-de-açúcar, as "plantations", com centenas de escravos. Portugal passou séculos sugando as nossas riquezas. No século 16, o reino português já havia exterminado o pau-brasil, ganhando a madeira dos índios em troca de bugigangas; no século 18 ainda levou embora o ouro de Minas Gerais. Como todas as exportações brasileiras eram controladas por Portugal, o país ficou limitado a ser uma colônia agrícola. E aí, lembrou-se dessa imagem? Pode esquecê-la. Essa história está virando, literalmente, coisa do passado. Daqui para a frente, vai conviver com esta aqui: no século 18, a economia brasileira é maior que a de Portugal. O país é repleto de rotas interestaduais de comércio de ferramentas, roupas e alimentos, e ainda exporta, fora do controle do rei português, produtos para a Argentina e a costa africana. A descoberta do ouro ergue fortunas que ficam por aqui, tornando o Brasil capaz de ter investimentos para crescer mesmo em épocas de crise internacional. Os homens mais ricos (entre eles, negros e índios) constroem sua fortuna não como latifundiários, mas pelo comércio e emprestando dinheiro a juros. A maioria dos brasileiros é formada por homens livres que mantêm comércios ou pequenas fazendas. Esse novo passado tem sido descoberto por historiadores nos últimos anos. Dezenas de novos estudos apagam silhuetas tradicionais da história brasileira. E montam uma paisagem nova. Nas próximas páginas, conheça a nova história do Brasil.

Uma história mais tranquila
Grande parte da história que os brasileiros conhecem hoje, aquela que ainda está na maioria dos livros didáticos, foi criada (ou virou consenso) entre 1960 e 1980. Era um tempo mais tenso do que hoje. A Guerra Fria dividia os países, os governantes e os intelectuais entre comunistas e capitalistas. Na América Latina, as ditaduras militares calavam jornalistas e professores, torturavam e matavam dissidentes. Se no governo dominavam os capitalistas, a direita, nas universidades predominavam as ideias e os métodos de Karl Marx, o pai do comunismo científico. Para se opor à ditadura, era estimulante ressaltar histórias de dependência internacional, em que classes sociais lutavam entre si e que tinham as grandes potências como as vilãs. "Era uma leitura do passado que nos preparava para a revolução", diz o historiador Marco Antonio Villa, da Universidade Federal de São Carlos.

Mas o tempo passou. As ditaduras caíram, assim como o Muro de Berlim e a União Soviética. Aos poucos, os pesquisadores ficaram um pouco mais longe das ideologias e passaram a tirar conclusões sem tanto medo de aderir a um ou outro lado da política. "A geração anterior foi muito marcada pela luta ideológica, exacerbada durante os governos militares. Divergências eram logo transpostas para o campo político-ideológico, com prejuízo para o diálogo e a qualidade dos trabalhos", diz o historiador José Murilo de Carvalho, professor da UFRJ e um dos imortais da Academia Brasileira de Letras. "A nova geração de historiadores formou-se em ambiente menos tenso e polarizado, com maior liberdade de debate e um ambiente intelectual mais produtivo."

A visão clássica do Brasil colonial nasceu com o intelectual paulista Caio Prado Júnior em 1933. No livro Evolução Política do Brasil, ele afirma que a sociedade brasileira era simples e desigual: "Nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o mercado europeu. Nada mais que isso". Tudo girava em torno do latifundiário, que deixava só miséria por aqui. A teoria de Caio Prado fez um sucesso tremendo nas décadas seguintes.

Até que, nos anos 90, historiadores descobriram dados que não batiam com a teoria. Registros dos portos do Rio de Janeiro e de Salvador mostravam que, em épocas de crise econômica europeia, quando os preços de açúcar e algodão desabavam pelo mundo, no Brasil eles mudavam pouco. Mesmo quando as exportações do Rio de Janeiro diminuíram, a compra de farinha e charque do Rio Grande do Sul aumentava. Esses dados sugerem que havia um bom mercado consumidor no Brasil. Além disso, o testamento dos homens mais endinheirados mostrava que a maioria não fez fortuna exportando cana-de-açúcar, mas fabricando ferramentas ou emprestando dinheiro. Eles compravam fazendas só depois de ricos, para ganhar status de proprietários de terras e eventuais títulos de nobreza.

O mais recente estudo com essa nova visão virou o livro História do Brasil com Empreendedores, de Jorge Caldeira, lançado em 2009. Ele mostra mais um mito do Brasil colonial: a ideia de que só havia por aqui uma enorme massa de escravos e seus senhores. Em 1819, os escravos eram um quarto da população total, de 4,4 milhões de pessoas. E, entre os brasileiros livres, 91% deles não tinham escravos. "Com essa população, o Brasil tinha uma economia maior que a de Portugal", diz Jorge Caldeira.

Os mitos do outro lado, os da direita, também estão com os dias contados. No caso da Guerra do Paraguai, glorificada pela caserna, hoje ninguém discute que os soldados negros foram entregues à própria sorte no campo de batalha, sendo os primeiros a morrer. Alguns, inclusive, foram à guerra como "substitutos", no lugar de senhores de escravos que preferiram não arriscar a vida pelo país. Tiradentes, mártir usado como peça de proganda dos governos desde o início da República, teve sua participação na Inconfidência Mineira bem diminuída. Falando em República, hoje se reconhece que, logo depois que os militares a proclamaram, em 1889, o Brasil regrediu em diversos pontos. A censura à imprensa, por exemplo, foi um dos primeiros atos do proclamador em pessoa, o marechal Deodoro da Fonseca.

Mito 1
"A sociedade brasileira se dividia entre senhores e escravos"
Havia mais pessoas livres do que se imagina. No século 18, 40% da população era de escravos. No começo do 19, 25%. E alguns senhores trabalhavam com os negros, já que tinham poucos escravos.

Mito 2
"Portugal apenas sugava nossas riquezas"
A montagem de engenhos e a exploração de ouro trouxeram riquezas para cá, criando um comércio ativo no Brasil. No fim do século 18, nossa economia era maior que a de Portugal.

Mito 3
"Os latifundiários eram as pessoas mais ricas"
Um navio negreiro valia mais que um engenho inteiro. Só 25% dos maiores testamentos eram de fazendeiros, o resto era de comerciantes, banqueiros e traficantes de escravos. Esses homens, para ganhar status, compravam terras no fim da vida.

Mito 4
"A Inglaterra fez o Brasil destruir o Paraguai"
Ao contrário do que se imagina, a diplomacia britânica tentou evitar o conflito. O país tinha investimentos no Brasil e no Paraguai, que ficariam em risco em caso de guerra.

Mito 5
"Aleijadinho era um deficiente físico grave que fez centenas de estátuas sozinho"
As famosas esculturas são provavelmente fruto de vários e talentosos artistas, que dividiam o trabalho entre si e tinham ajudantes. E a imagem dele como um homem desfigurado pode ser uma criação literária.

Mito 6
"Lampião lutava contra coronéis e latifundiários"
O rei do cangaço prestou favores a grandes coronéis do sertão. Ao mesmo tempo, ameaçava famílias pobres e executava operários que construíam estradas pelo interior do Nordeste.

Mito 7
"O Paraguai era uma potência latente"
Era o país mais atrasado do Cone Sul. O comércio exterior era 6 vezes menor que o do Uruguai, que tinha a metade da população.

Mito 8
"Canudos era uma sociedade igualitária"
A cidade de Antonio Conselheiro não pregava a reforma agrária. Como fora dali, havia miseráveis e pessoas mais ricas.

Mito 9
"Santos Dumont inventou o avião"
O inventor brasileiro foi um gênio. Mas os irmãos Wright voaram 3 anos antes dele e, em 1906, quando o 14 Bis decolou, já tinham um avião bem melhor. A grande aeronave do brasileiro é outra: o Demoiselle, de 1908, primeiro ultraleve da história.

Mito 10
"Os bandei­rantes eram desbravadores europeus"
Os bandeirantes eram filhos de índios com brancos, andavam quase nus e seguiam a cultura tupi-guarani.

Mito 11
"A banana e o coco são nativos do Brasil"
Essas frutas, assim como a jaca, a manga e o abacate e alguns animais, como os cães, não existiam no Brasil. Chegaram aqui a bordo das caravelas europeias.

Mito 12
"A feijoada foi criada com restos da Casa-Grande"
Ao contrário do que muita gente acredita, a feijoada tem origem europeia. Vem da tradição de misturar legumes com carnes, como o cassoulet, francês, feito com carne de porco e feijão branco.

Mito 13
"Os índios do Sudeste foram praticamente extintos "
Enquanto milhares de índios eram dizimados, outros decidiram deixar as aldeias e ir para as cidades, assimilando-se à população. Hoje, na média, 8% do genoma dos brasileiros tem origem indígena.

Mito 14
"Os índios não foram escravizados"
Principalmente durante os séculos 16 e 17, milhares de índios de todo o Brasil e do Paraguai foram levados a São Paulo como escravos. Como outras regiões também precisavam de trabalhadores, começaram a trazer escravos da África.

Mito 15
"Os quilombos lutavam contra a escravidão"
As comunidades lutavam pela liberdade de seu grupo. Mas é provavel que os membros poderosos tivessem escravos próprios.

Mito 16
"A Inglaterra foi contra a escravidão para criar um mercado consumidor"
A luta contra a escravidão na Inglaterra partiu de um movimento religioso e popular. Não passava pela cabeça dos homens de negócio ingleses acabar com a escravidão nas colônias britânicas na América.

Mito 17
"A maioria das fazendas tinha dezenas de escravos"
Os engenhos com muitos escravos eram raridade. No século 18, a maioria estava, em média, em plantéis pequenos, geralmente de 4 ou 5 pessoas.

Mito 18
"Os africanos viviam em tribos selvagens"
Enriquecidos com a venda de algodão, ouro e escravos, alguns reinos africanos ficaram poderosos. Havia por lá exércitos e cidades grandes.

Mito 19
"O samba é um ritmo puramente brasileiro"
O ritmo tem influências que não são do Brasil nem da África. Donga, o músico que gravou o primeiro samba, em 1917, montou bandas de jazz. Sinhô, o "rei do samba" nos anos 30, usava melodias europeias em suas canções.

Uma história destruidora
A história de qualquer país nasceu no berço do patriotismo. Na tentativa de construir um passado comum entre os habitantes e deixá-los orgulhosos do lugar onde viviam, surgiram relatos de grandes artistas e heróis, tradições milenares, mitos da fundação do país e datas nacionais. No Brasil, esse tipo de leitura da história surgiu principalmente com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), de 1838. O órgão teve uma importância gigantesca para o país. O próprio imperador dom Pedro 2º participava de suas reuniões, de onde saíram os primeiros grandes relatos da história brasileira, caso do Como Se Deve Escrever a História do Brasil, do naturalista Carl von Martius, de 1840, e História Geral do Brasil, escrito por Francisco Varnhagen em 1854. Por trás dessas obras, havia sempre uma moral edificante e uma tentativa de valorizar a pátria.

Esse modo de ver a história cria um vício: tudo passa a ser visto de forma parcial. Se alguém do seu país consegue mesmo um grande feito, tende a ganhar uma aura de herói. E ai de quem questionar seus feitos. A aura em torno de Santos Dumont no Brasil é um dos maiores exemplos disso. Aqui ele é o pai da aviação. E ponto final. No resto do mundo, engenheiros e historiadores consideram os irmãos americanos Orville e Wilbur Wright mais importantes para o pioneirismo das máquinas voadoras. E é fato. Não se trata apenas de esforço dos EUA em vender seus heróis. Ao contrário do que muita gente acredita no Brasil, os irmãos americanos voaram na presença de testemunhas antes de Santos Dumont apresentar o 14 Bis ao mundo. No dia 5 de outubro de 1905, fizeram um único voo de 39 minutos, percorrendo 38,9 quilômetros. Já o 14 Bis, em novembro de 1906, voou 220 metros de distância a uma altura máxima de 6 metros. E foi abandonado 5 meses depois, quando sofreu uma queda lateral e teve uma das asas despedaçadas. Se as últimas linhas despertaram em você alguma emoção mais quente, tenha calma. Ao contrário da história do século 19, a atual não se preocupa em criar ícones de heroísmo nacional e descrever grandes feitos. Na verdade, uma parte dos intelectuais de hoje se dedica a investigar como grandes lendas da história ganharam forma - e esse trabalho tende a destruir mitos consagrados.

Um exemplo lapidar dessa tendência é o livro Aleijadinho e o Aeroplano, publicado pela historiadora Guiomar de Grammont, da Universidade Federal de Ouro Preto, em 2008. A obra mostra como a imagem do escultor mineiro Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, não veio de documentos históricos, mas da cabeça de um escritor.

A primeira biografia de Aleijadinho foi escrita pelo jurista e deputado mineiro Rodrigo Ferreira Bretas em 1858. Mesmo sem fontes e documentos para provar o que dizia, Bretas descreveu seu personagem com detalhes horripilantes. A partir dos 47 anos, o escultor teria sofrido de uma doença desconhecida, que o fizera perder os dedos, os dentes e curvar o corpo. Para poupar os passantes de topar com sua feiúra, o homem entocava-se em igrejas, separado do mundo com cortinas improvisadas. Para a historiadora, o mais provável é que a fonte de inspiração da biografia de Bretas eram personagens literários populares no século 19, como Quasímodo, o corcunda de Notre Dame do livro do escritor francês Victor Hugo. Os dois são impressionantemente parecidos. Como Aleijadinho, Quasímodo era um belo-horrível: apesar de ter uma aparência desfigurada, era capaz de boas ações. A descrição de Victor Hugo caberia muito bem a Aleijadinho: "A careta era o próprio rosto, ou melhor, a pessoa toda era uma horrível careta; entre os dois ombros, uma corcunda enorme da qual o contragolpe se fazia sentir na parte frontal de seu corpo; um sistema de coxas e de pernas tão estranhamente tortas que se tocavam apenas por meio dos joelhos". O personagem de Bretas era tão fascinante que pegou. O biógrafo ganhou prêmios de dom Pedro 2º e virou sócio-correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

No começo do século 20, os modernistas viram em Aleijadinho a expressão da cultura mestiça brasileira, já que o escultor era filho de um português com uma escrava. O problema é que isso é uma das poucas coisas que se sabe mesmo sobre Antônio Francisco Lisboa. Não só a biografia escrita sem base em documentos e décadas depois de sua morte não ajuda como também há outro empecilho: não dá para saber quais obras realmente são dele. Não havia o costume de assinar esculturas naquela época. Mas a lenda em torno de seu nome ficou tão forte que Aleijadinho virou uma grife. E o número de obras atribuídas a ele explodiu. Na década de 1960, eram 160 esculturas; hoje são mais de 400. Pesquisadores consideram isso um exagero. Mas, ao que parece, a verdade não importa tanto. A aura vale mais. Só que a nova historiografia pode acabar com isso.

Uma história de baixo para cima
Por 3 séculos, os homens mais poderosos na vila que deu origem a Niterói, no Rio de Janeiro, eram os Souzas. Em 1644, Portugal concedeu a um rapaz chamado Brás de Souza o cargo de capitão-mor daquela aldeia. A justificativa era que se tratava de um "descendente dos Souzas, que sempre exercitaram o dito cargo". O reino deu um argumento parecido 150 anos depois, quando outro Souza, Manoel, ganhou o cargo de capitão-mor. Segundo o órgão do reino português, o homem devia receber o posto porque tinha uma "ascendência nobre". O curioso é que aqueles senhores bem-nascidos não eram descendentes de nenhum português com sangue azul. O primeiro Souza daquela região se chamava Arariboia. Era o líder da tribo dos temiminós que, no século 16, se aliaram aos portugueses para expulsar os franceses e os índios tupinambás do Rio de Janeiro. Depois da vitória, os índios ganharam um nome português e se instalaram por ali. Menos de 100 anos depois, seus descendentes já não se viam como índios: eram os Souzas.

Até pouco tempo atrás, a história do Brasil admitia só dois personagens indígenas: ou a vítima passiva ou o selvagem rebelde. Mas uma nova figura surgiu: o índio colonial, aquele que se mudou para as cidades e adotou um nome português. Isso aconteceu com os descendentes de Arariboia e com índios de todo o Brasil. Em Minas Gerais, despachos do governador mineiro mostram que muitos índios coropós, gavelhos e croás, que há até pouco tempo eram considerados extintos, se mudaram para as cidades para tentar lucrar com a corrida do ouro do século 18. Em São Paulo, censos de 1798 a 1803 mostram centenas de índios com endereço, nome português e profissão - havia agricultores, carpinteiros, músicos...

Outra paisagem que está mudando é a que retrata os bandeirantes, os sertanistas que exploravam o interior do Brasil em busca de ouro e índios que levavam a São Paulo como escravos. Nos quadros clássicos, eles aparecem fortes, bem-vestidos, submetendo os nativos à sua vontade. Imagens assim surgiram no século 19, 2 ou 3 séculos depois de os bandeirantes explorarem as florestas brasileiras. Escritores paulistas, na tentativa de criar um passado heróico para São Paulo, reverenciaram os bandeirantes e os descreveram à sua imagem e semelhança, sem influência indígena. "Era uma paisagem imaginada, já que não existem imagens deles anteriores a 1810", diz o escritor Jorge Caldeira. Hoje, acredita-se que a diferença entre índios e bandeirantes fosse bem menor.

Se os bandeirantes tinham alguma roupa, ela se desfazia depois de poucos meses no meio do mato. Por isso, andavam provavelmente nus e descalços. Filhos de portugueses com mulheres nativas, eram mestiços. Muitos cresceram nas aldeias convivendo com tios, primos e irmãos índios. A maioria tinha várias mulheres, dando de ombros à vigilância dos jesuítas, que proibiam a poligamia. "Para a cultura tupi-guarani, um aliado tinha que ser parte da família. Era uma exigência dos líderes indígenas que os europeus tivessem mulheres índias. Isso favoreceu o surgimento de uma população profundamente miscigenada", afirma Caldeira. Um bom exemplo de bandeirante-índio é Domingos Jorge Velho, que destruiu o Quilombo de Palmares em 1695. Filho de uma índia e de um português, ele cresceu entre aldeias. Ao chegar a Pernambuco para lutar contra Zumbi, teve problemas para se comunicar com as autoridades pernambucanas: ele não falava português, só tupi-guarani.

Essas descobertas são resultado de um novo jeito de ler a história indígena. Em vez de se concentrar nos relatos dos brancos, os pesquisadores passaram a olhar a história de baixo para cima, a partir de como os mais fracos (no caso, os índios) agiam e pensavam. Quando adotaram essa nova abordagem, os historiadores tomaram um susto. Perceberam que os índios não foram só vítimas. Também souberam se adaptar aos invasores e, principalmente, protagonizaram episódios fundamentais na história do Brasil. Algumas tribos tinham poder suficiente para negociar com os brancos, traçar estratégias e fazer sua vontade prevalecer. Isso também vale para as bandeiras e as guerras indígenas. "Certos conflitos europeus no Brasil também eram guerras de índios contra índios", diz o professor Antonio Carlos Jucá, da UFRJ. Em 1565, por exemplo, o padre José de Anchieta estranhou que os tupinambás de repente tentaram ficar amigos dos colonos portugueses. Para o padre, o motivo da aproximação era estratégico, pois aqueles índios tinham um "desejo grande de guerrear com seus inimigos tupis, que se levantaram contra nós".

Uma história com pessoas
Conheça 3 mulheres da história do Brasil: Joanna Baptista, Caetana e Bárbara Gomes de Abreu e Lima.

- Joanna Baptista foi uma mulher livre que, em 1780, em Belém do Pará, decidiu se vender como escrava. Cobrou, por si própria, 40 mil-réis em dinheiro e outros 40 mil em jóias e roupas. A venda foi registrada em escritura por um tabelião, na presença do comprador e de duas testemunhas. O documento conta que Joanna, doente, decidiu se tornar escrava porque "se achava sem pai nem mãe que dela pudessem tratar, e nem tinha meios para viver em liberdade, e para poder viver em sossego, empregando-se no serviço de Deus e de um senhor que dela tivesse cuidado e em suas moléstias a tratasse".

- Em 1835, Caetana, escrava de uma fazenda de café de Rio Claro, em São Paulo, foi obrigada a casar com o escravo Custódio. No começo ela aceitou. Depois, bateu o pé e se recusou a dormir com o marido. Pediu ao seu dono, o capitão Tolosa, para anular o casório. O senhor da escrava topou. Contratou um advogado, que montou uma petição para a Justiça eclesiástica. Contrariando o machismo e a falta de direitos dos escravos daquela época, Caetana conseguiu anular seu casamento.

- Uma das pessoas mais ricas da vila mineira de Sabará no século 18 foi a ex-escrava Bárbara Gomes de Abreu e Lima. Dona de um casarão em frente à Igreja Matriz, ela tinha 7 escravos, revendia ouro e controlava negócios em diversas cidades de Minas e da Bahia. A herança incluía dezenas de saias, vestidos, joias e artefatos de metais preciosos.

Essas 3 mulheres dificilmente se encaixam em alguma lógica ou em teorias tradicionais da história do Brasil. Como pode uma pessoa livre querer virar vítima de um sistema cruel? Por que uma ex-escrava, depois de se libertar da escravidão, se tornaria dona de escravos? Casos como os delas, descobertos na última década por historiadores brasileiros e americanos, são exemplos de mais uma diferença da nova história do Brasil: tentar contar uma história com pessoas.

A geração anterior, que inspirou nossos livros didáticos, consideraria essas mulheres exceções. O método predominante lá atrás era montar teorias gerais, grandes esquemas para explicar as origens da sociedade brasileira. Nessa leitura do passado, sociológica, o que mais importava eram as dinâmicas das classes sociais e as relações econômicas entre os países. Indivíduos que não agiam conforme uma lógica de classes ficavam de fora dos livros.

Aos escravos e ex-escravos, só havia duas possibilidades de comportamento: ou eles eram submissos, vítimas eternamente passivas do sistema escravista, ou rebeldes que morriam lutando contra a escravidão. Nos últimos 20 anos, cartas comerciais, registros de cartório, testamentos e arquivos judiciais revelaram personagens mais complexos do que as teorias sociológicas mostravam. "Sabemos hoje que não havia apenas uma forma de responder à escravidão. Como pessoas inteligentes, cada escravo traçava suas estratégias", diz o historiador Antonio Carlos Jucá de Sampaio, da UFRJ. Claro que eram estratégias limitadas a um contexto de total falta de direitos. Mas ainda assim cada um tinha sua maneira de exercer o pouco que tinha de livre-arbítrio de modo a obter uma vida menos ruim. "Isso explica por que, enquanto alguns escravos fugiam para os quilombos, outros ganhavam armas para cuidar das fazendas."

Também veio à tona uma influência bem maior da África na escravidão brasileira. Capturando e vendendo escravos para os europeus, alguns reinos africanos ficaram riquíssimos. Um exemplo é o reino do Daomé, atual Benin. No século 18, havia por lá estradas, pontes vigiadas por guardas e cidades com 28 mil pessoas. As relações comerciais eram tão intensas que, em 1795, dois embaixadores do Daomé fizeram uma longa viagem diplomática à Bahia e a Portugal para negociar o monopólio da venda de escravos.

A América também funcionava como um abrigo de nobres africanos que perdiam disputas pelo poder. Foi assim que um príncipe africano chamado Fruku chegou ao Brasil. Mandado para cá como escravo, logo conseguiu comprar sua alforria. Mesmo exilado no Brasil, permaneceu atento à política do outro lado do Atlântico. Vinte anos depois, quando a situação política do Daomé melhorou para o seu lado, ele voltou à África para tentar reaver seu trono, dessa vez com o nome de "dom Jerônimo, o Brasileiro".

Se você pudesse entrar num De Lorean do De Volta para o Futuro e viajar para 2 ou 3 séculos atrás, poderia, sim, topar com a imagem que os professores descrevem na escola, aquela do engenho de cana-de-acúcar com centenas de escravos. Mas também veria cenas diferentes. "Diversos estudos novos mostram que a maioria dos senhores tinha poucos escravos. Eram grupos pequenos", diz Renato Marcondes, professor de história econômica da USP. Você ficaria surpreso ao perceber que alguns desses senhores eram negros. Sabe-se hoje que, em muitas vilas e cidades brasileiras, ex-escravos eram uma parte considerável dos donos de escravos. Em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, um terço dos donos de escravos era de negros. Em Santiago do Iguape, 46,5%. Mais: "Como o número de escravos era menor que o necessário, podemos supor que o dono da fazenda e seus filhos trabalhavam na roça ao lado dos escravos", diz Bert Barickman, historiador da Universidade do Arizona e autor do livro Um Contraponto Baiano.

Nada disso suaviza o fato de que 4 milhões de africanos foram trazidos à força, ficando entregues aos castigos dos seus senhores. Mas uma história contada do ponto de vista das pessoas, não das ideologias, até deixa os absurdos mais claros: Isabel, uma escrava da Bahia, foi jogada viva, e grávida, numa fornalha porque contou para a mulher de seu dono que ele a traía, por exemplo. Crimes assim são uma vergonha eterna. Mas a criação de um passado fictício não irá vingá-los.


*Autor do livro Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil (editora Leya, 2009)


Para saber mais

Homens de Grossa Fortuna
João Luís Fragoso, Civilização Brasileira, 1998.

Aleijadinho e o Aeroplano
Guiomar de Grammont, Civilização Brasileira, 2008.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Ainda a campanha da ATEA: reclamação na Folha de S. Paulo

Pequena reclamação publicada na Folha de S. Paulo de hoje (negritado e em vermelho, lá embaixo):

São Paulo, quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
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PAINEL DO LEITOR

O "Painel do Leitor" recebe colaborações por e-mail (leitor@uol.com.br), fax (0/xx/11/3223-1644) e correio (al.Barão de Limeira, 425, 4º andar, São Paulo-SP, CEP 01202-900). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Folha se reserva o direito de publicar trechos.

Leia mais cartas na Folha Online
www.folha.com.br/paineldoleitor

Salários
O Brasil nunca sairá do Terceiro Mundo enquanto os políticos somente governarem em causa própria ("Câmara aprova aumento de salário do Executivo e Legislativo para R$ 26,7 mil",Folha.com, ontem). Isso é um espólio a todos nós, que lutamos, contribuímos com nossos impostos e tentamos viver com nossos salários, enquanto vemos as falhas na educação, na saúde e na segurança pública.
Com a aprovação do aumento, crescerá ainda mais a deficiência desses serviços, pois de onde sairão os recursos?
Se os senadores e o presidente tiverem consciência disso, não aprovarão esse projeto.
JONAS DE ANDRADE VILAS BOAS (Campinas, SP)


O Tiririca já teve a primeira lição do que faz um deputado federal: aumenta o próprio salário.
CARLOS GASPAR (São Paulo, SP)

Aborto
O governador Sérgio Cabral generaliza seu comportamento leviano ao perguntar "quem aqui não teve uma namoradinha que precisou abortar?". Não venha o trêfego governador justificar um comportamento seu no passado para pedir uma discussão sobre o que chama eufemisticamente de "interrupção de gestação".
O aborto, que a maioria da população brasileira rejeita em todas as pesquisas, é homicídio.
Não venha Cabral com uma argumentação inconsistente de "problema de saúde pública".
Problema de saúde pública é esquistossomose, malária, pelagra, subnutrição. É uma gestante de 19 anos peregrinar por vários hospitais no Rio e morrer sem ser atendida, como ocorreu há pouco. É a procura de um leito de CTI nos hospitais do Estado.
Como médico, protesto contra a leviandade com que esse assunto é tratado pelo governador.
HERBERT PRAXEDES (Niterói, RJ)

Contrastes
O Brasil realmente é o país dos contrastes, das dúvidas e das enganações, conforme se viu na reportagem "Seguro obrigatório de carros subirá até 15% em 2011" (Mercado, ontem).
Muito interessante esse aumento, já que os valores das indenizações pagas nos casos de morte, invalidez permanente e reembolso de despesas médicas em decorrência de acidentes de trânsito permanecerão inalterados.
IVO KUHN (Curitiba, PR)

CPMF
Onde foi parar o desconto da CPMF? Gostaria de saber, especialmente da Fiesp, quando, como e onde o valor da CPMF cortada contribuiu para baixar o preço dos produtos e serviços das empresas.
ELYANNE GUIMARÃES BRASIL (Belo Horizonte, SP)

WikiLeaks
A Força Aérea dos EUA bloqueou os sites de jornais para seu público interno ("Força Aérea dos EUA bloqueia sites que divulgaram documentos do WikiLeaks", Folha.com, 14/12).
Isso não configura censura à imprensa? Não é cerceamento à liberdade das pessoas em busca de notícias? Claro que sim! Então por que a nossa mídia não denuncia com destaque? Por que o ato vem dos EUA? Mas quando vem do Irã, de Cuba, da Rússia ou da Coreia do Norte toda a imprensa tupiniquim esbraveja histericamente.
JEFERSON MALAGUTI SOARES (Belo Horizonte, MG)

País do futebol
A coluna de Tostão de ontem estava um primor: usou o brado "Brasil, acorde!" para chamar a atenção dos dirigentes, da mídia esportiva e dos torcedores para a realidade do nosso futebol.
Há tempos deixamos de jogar o melhor futebol do mundo. No ranking da Fifa, ocupamos um modesto quarto lugar, e nossos melhores jogadores deixaram de figurar na lista dos premiáveis.
Por outro lado, ficamos encantados com jogadores que pedalam e fazem firulas e malabarismos sem, entretanto, atentarmos para a falta de objetividade dessas jogadas. Tais jogadores, quando vão jogar no exterior, acabam no banco de reservas.
Além disso, faltam-nos líderes no gramado. Que saudades de Zito, Didi, Gerson etc.
SIMÃO KORN (Santos, SP)

Ateus
Fernando de Barros e Silva ("Ateísmo e delírio", Opinião, 11/12) deve viver em outra realidade para afirmar que está confortável sendo membro da minoria brasileira que não acredita em deus.
O que se percebe com clareza, e a última eleição confirmou, é que não acreditar em deus no Brasil é motivo de preocupação para os não crentes, que são tachados de mentirosos a pessoas sem caráter (Datena), passando por torturadores (Frei Betto).
A campanha (censurada) da Atea não é obra de uma "igrejinha"; é uma necessidade social, política e intelectual contra os violentos obscurantismo e preconceito do Brasil.
GUSTAVO BISCAIA DE LACERDA, sociólogo da UFPR (Curitiba, PR)

"Cansamo-nos de agir
E até de pensar cansamos;
Só não cansamos de amar
E nem de dizer que amamos"

(Teixeira Mendes, a partir de Augusto Comte) http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/
http://membres.lycos.fr/clotilde/

[As partes desta mensagem que não continham texto foram removidas]

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Propaganda antecipada, cultura política e república

O texto abaixo foi publicado no jornal curitibano Gazeta do Povo de 20 de maio de 2010; pode ser consultado diretamente por aqui:

http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1004919&tit=Propaganda-antecipada-cultura-politica-e-republica

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Três anos atrás, víamos que nos Estados Unidos a campanha eleitoral que escolheria o sucessor de George W. Bush iniciara-se mais de um ano e meio antes das eleições: já no Brasil a campanha só pode começar seis meses antes. Por que a diferença?

Nos dois países os valores em jogo são a consideração de que todos os cidadãos podem, em princípio, concorrer a todos os cargos em igualdade de condições e em ambientes livres (sem impedimentos socioinstitucionais). O que muda em cada caso é que nos Estados Unidos valoriza-se mais a liberdade de associar-se e difundir as ideias dos candidatos; no Brasil valoriza-se a igualdade de condições da disputa, procurando-se evitar que o poder econômico de alguns ponha em desvantagem os economicamente menos privilegiados, mas cuja participação, pelo simples fato de serem cidadãos, é considerada tão importante quanto a dos demais.

Não vem ao caso tratar do acerto da escolha brasileira: aceitemo-la e consideremos o que se pratica no país. O que se pratica? A afir­­ma­­ção despudorada, ainda que cautelosa, da força do poder políti­­co e não do poder econômico: são os grupos no poder que têm maior possibilidade de propaganda antecipada, transformando a administração pública em palanques eleitorais em nome do “povo” (Mas não consideramos aqui que os programas sociais em voga são “eleitoreiros”: afinal, o Brasil apresenta problemas sociais muito sérios, que exigem atitudes que se dirijam diretamente aos grupos excluídos; é natural que os políticos que satisfaçam essas necessidades terão apoio popular).

O que interessa aqui é o seguinte: o desrespeito à legislação que proíbe a propaganda antecipada afeta de que maneira a cultura política brasileira? A resposta direta é: esse desrespeito fragiliza a nossa “república”; essa fragilização não é somente uma consequência indireta, mas também é um resultado intencional de vários políticos.

Enquanto a democracia pode ser definida grosso modo como a afirmação da “soberania popular”, a república pode ser entendida como o conjunto de instituições políticas que organiza os cidadãos em sua vida coletiva. Essas instituições têm de ser legítimas, isto é, consideradas aceitáveis e representativas da vontade do conjunto dos cidadãos; além disso, elas têm de ser minimamente eficazes, no sentido de que consigam identificar as demandas sociais e dar soluções para elas.

Ora, o que se vê é que o desdém pelas instituições políticas brasileiras é cada vez mais a regra, mesmo apesar do afirmado apoio de vários grupos e partidos políticos às instituições republicanas. Na verdade, pode-se considerar com seriedade que esse apoio é a compensação retórica para o desrespeito prático. Daí se desenvolve um sistema de hipocrisia que a população reconhece com facilidade: não são casuais o desânimo e a apatia políticos manifestados atualmente.

O problema vai além, pois as outras instituições responsáveis pela saúde política da república, ou são omissas ou, quando fiscalizam, são mais e mais achincalhadas. Os exemplos mais dramáticos são a imprensa, o Tribunal Superior Eleitoral e o Ministério Público: de maneira hipócrita e demagógica, todas as investigações que tais órgãos fizeram nos últimos meses foram desqualificadas, ridicularizadas e afirmadas como “perseguição partidária”. O mais clamoroso exemplo, para o que nos interessa, é o desdém do presidente Lula às (raras) multas que o TSE aplicou-lhe pelo desavergonhado uso eleitoral da propaganda institucional.

Repitamos: esse desrespeito sistemático tem efeitos na cultura política nacional, no sentido de estimular a apatia. Para evitar isso, a vida política tem de ser entendida como mais ampla que a atividade partidária, incluindo principalmente o controle do público sobre o Estado. Assim, o apoio popular às investigações do Ministério Público e à cobrança de que o TSE multe com rigor as propagandas eleitorais antecipadas é uma forma republicana e efetiva de participação política.

Criticidade de manual

Artigo publicado em 31.5.2010, na Gazeta do Povo (Curitiba, n. 29 421, p. 2); http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1008858&tit=Criticidade-de-manual

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Criticidade de manual


Na realidade pedagógica brasileira inúmeros temas são tratados de maneira rasteira, estereotipada e baseada em interesses facciosos.

A recente introdução da Sociologia no ensino médio, embora segundo alguns seja um avanço para a “reflexão social crítica”, também apresenta um sério risco de criar distorções intelectuais e políticas. A Sociologia, ao contrário de outras disciplinas, como a Matemática ou a Biologia, trata diretamente da organização da nossa sociedade; o que se ensinar em suas aulas terá consequências claras, embora não mecânicas nem imediatas, para a vida coletiva. Dessa forma, problemas em seu ensino resultam em sérios problemas sociais.

Deixemos claro, antes de mais nada, que não advogamos uma ciência “neutra”, asséptica, que se encastele nos bancos escolares e que, no fundo, não tenha serventia social alguma: o que nos preocupa, ao contrário, é que essa disciplina sirva para difundir preconceitos interessados, à direita e/ou à esquerda, isto é, dos marxistas, dos liberais ou dos católicos. Ao difundir preconceitos teóricos, essa disciplina pode legitimar perspectivas e rejeitar outras, ao sabor das conveniências e dos interesses.

Não afirmo que isso seja a regra: mas, por um lado, a implantação da Sociologia no ensino médio está apenas no início (ou seja, há tempo de sobra para tais distorções firmarem-se). Por outro lado, já temos à disposição exemplos clamorosos que confirmam os temores: basta ver a proposta de diretrizes para Sociologia do estado do Rio de Janeiro (cf. aqui: http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=1587〈=pt-br).

Vejamos outro exemplo, mais sutil e, por isso, mais daninho. No vestibular da Universidade Estadual de Maringá (UEM) de 2009, víamos a seguinte questão na prova de Sociologia: “Sobre o tema conflito social, assinale o que for correto”; entre as várias opções, havia a seguinte: “08) Auguste Comte define o conflito como propulsor da mudança social em direção ao Estado positivo”. O formulador da prova considerava que essa afirmação está errada – mas, ao contrário do afirmado pelos preconceitos (interessados ou não) e repetido pelos manuais, isso é incorreto.

A perspectiva-padrão (e única) dos manuais é que a teoria comtiana é a favor do “consenso”, a partir de um organicismo, em que todos os indivíduos e instituições têm de ser pacíficos e obedientes à ordem social vigente; assim, ele seria o arquiconservador, a que se deve opor o “progressivismo” da revolução e dos “conflitos”. Ora, deixando de lado a ideologia partidária implícita nessa visão, o fato é que – como minha tese de doutorado em Sociologia Política foi, precisamente, sobre a teoria sociopolítica de Augusto Comte – posso afirmar com segurança que essa teoria não é 1) contra o “conflito”, 2) nem organicista, 3) nem a favor do status quo 4) nem “conservadora”.

Recentemente, colaborei na elaboração da apostila do Colégio Positivo para a disciplina de Sociologia no ensino médio, redigindo a parte relativa a Comte: sem dúvida que abordei o tema acima. Todavia, essa é apenas uma única apostila – mesmo que seja uma apostila adotada em centenas de escolas Brasil afora –; outra coisa é a realidade pedagógica brasileira, em que inúmeros temas são tratados de maneira rasteira, estereotipada e, como vimos, baseada em interesses facciosos; ainda outra coisa é a realidade dos vestibulares, que seguem os mesmos preconceitos e erros, seja voluntariamente, seja involuntariamente.

Como dissemos há pouco, o exemplo acima é sutil, mas seus efeitos intelectuais e práticos não o são. O resultado disso tudo é desastroso sob qualquer perspectiva: os alunos dos manuais são deseducados, os vestibulares incentivam o erro e, no meio do caminho, quem aprender corretamente os conceitos sociológicos poderá ser apenado devido aos estereótipos acadêmicos e políticos.

Passos longos do gigante

Entrevista publicada no dia 27.6.2010, na Gazeta do Povo (Curitiba):

Mundo

Segunda-feira, 28/06/2010

Diplomacia

Os passos (muito) longos do gigante

Brasil se mostra reticente em tomar partido nos conflitos regionais sul-americanos, mas se expõe em questões distantes

Publicado em 27/06/2010 | Osny Tavares

A lenda da “Bota de Sete Léguas” é uma das mais conhecidas do folclore europeu. Segundo a tradição oral, há um par de botas mágicas que dá àquele que as veste a possibilidade de, em um único passo, percorrer a distância que dá nome ao calçado, o equivalente a 45 quilômetros. O que aparenta ser uma grande vantagem para o caminhante se torna, aos poucos, motivo de frustração. Em um único passo, o usuário das botas pula de uma cidade a outra, e se torna impossível para ele conhecer o local a contento. A menos que as descalce, é claro.

O Itamaraty parece ter calçado a bota das sete léguas diplomáticas antes de sair pelo mundo atuando nos conflitos internacionais. Ao mesmo tempo em que faz lances pouco arriscados em imbróglios entre vizinhos sul-americanos, o Brasil se compromete e se alinha em questões distantes, que não se refletem diretamente nos problemas do país.

Do outro lado da fronteira amazônica, por exemplo, a relação política entre Colômbia e Venezuela é instável ao menos desde 2008, quando uma operação militar colombiana no Equa­­dor matou um líder das Forças Armadas Revolucionárias da Co­­lômbia (Farc). O governo Chá­­vez acusa a Colômbia de “invasão do território” de seu aliado, e fez vários desagravos públicos a Bogotá. Instado a mediar o conflito, o Brasil pôs panos quentes na possibilidade de haver um conflito armado entre os dois paí­­ses. Porém não mediou negociações para uma reconciliação definitiva – como chegou a ser sugerido por analistas internacio­­nais – nem se alinhou a qualquer uma das partes, resistindo aos pe­­didos de apoio dos dois países.

A mesma moderação não é identificada na posição brasileira em relação ao polêmico programa nuclear iraniano, que o Conselho de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas (ONU) acredita ser militarista. O governo em Teerã, há 15 mil quilômetros de Brasília, contou com os apoios brasileiro e turco du­­rante a votação de sanções ao país persa. Brasil e Turquia, mem­­bros rotativos do CS, foram os únicos a votar contra a imposição de restrições comerciais ao governo Ahmadinejad. O alinhamento pró-Irã foi criticado pela secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, para quem há “divergências muito sérias” entre Brasil e Estados Unidos em relação ao país.

Na avaliação de Jorge Fon­­toura, doutor em Direito Inter­­nacional e professor do Instituto Rio Branco, as escolhas brasileiras em sua política internacional estão de acordo com a linha ideológica da cúpula do governo brasileiro. “Na política nacional, o executivo faz um governo de coabitação entre os partidos, mas na política externa segue suas convicções ideológicas”, analisa.

Porém nos esboços de divisão entre esquerda e direita presentes na América do Sul, o Brasil não está assumindo posições com a mesma paixão, concorda Fontoura. “No continente, o Bra­­sil tem responsabilidades mais evidentes. Mesmo com países como Bolívia e Venezuela, que parecem ter mais sintonia com o nosso governo, a relação é am­­bígua. Não há condenação ou apoio a estes governos”, avalia, apontando questões econômicas como principal motivo do distanciamento: “O Brasil não pode se associar diretamente a países com democracias problemáticas porque é o maior receptor de investimentos do bloco sul-americano – e investidores temem ameaças à democracia”.

No entanto, para Gustavo Bis­­caia de Lacerda, sociólogo e cientista político da Universidade Fe­­deral do Paraná (UFPR), a escolha brasileira é, sobretudo, impulsionada pelo momento atual da geopolítica global. “Há dois anos ou mais o Brasil esteve profundamente envolvido em questões latino-americanas. Como essas questões foram mais ou menos solucionadas, passa-se para um novo momento. Ao mesmo tempo, o Brasil de Lula e Celso Amo­­rim tem ambições mundiais, daí a participação nas negociações com o Irã. Não creio que haja uma inversão de prioridades. Haveria tal inversão se, em vez de desenvolvermos o presente ativismo, adotássemos, por exemplo, um perfil mais comercial e menos político”, relaciona.

No passo longo da diplomacia brasileira, Lacerda reconhece diferenças em relação ao comportamento dos principais atores internacionais da atualidade. “O Brasil é uma potência econômica e diplomática com legitimidade e capacidade de articulação política, mas não temos os demais atributos das demais potências, em particular os efetivos militares. Isso aumenta nossa legitimidade nos foros internacionais”, prevê.

Importância regional

Mesmo que o Brasil seja alçado ao nível das grandes influências políticas internacionais, a Amé­­rica do Sul continuará sendo uma região de importância fundamental para o bem-estar político e econômico do país, concordam os especialistas ouvidos pela reportagem. “Há uma relação de simbiose na região. O Brasil é o fiador do sucesso do continente, e se a América Latina estiver bem o Brasil também estará”, prevê Fontoura.

Biscaia de Lacerda corrobora a análise de correlação: “Os problemas regionais sempre nos afetarão, seja devido às questões de segurança – como uma guerra civil na Colômbia ou problemas sociais, políticos e econômicos no Paraguai, na Bolívia, na Vene­­zuela e, em menor escala, na Argentina – seja devido ao “efeito de demonstração”. Se o Brasil não consegue apaziguar ou manter o seu entorno em relativa paz, como pretende interferir nas grandes questões mundiais?”, indaga.

Nesse campo minado, contudo, é importante para o Brasil não passar a falsa imagem de país imperialista. “Hoje, o capital brasileiro tem inserção internacional e o empresário brasileiro atua agressivamente. O Brasil precisa ser sábio com seus vizinhos para não criar a pecha de arrogante”, recomenda Fontoura.

“Convém notar que estamos em uma situação internacional de destaque não somente porque nos esforçamos e sacrificamos para isso, mas também porque houve um declínio relativo de outras grandes potências”, ressalta Biscaia de Lacerda. “Embora estejamos agora em uma situação melhor do já estivemos, não temos condições de financiar qualquer outro ativismo internacional que não seja o das negociações”.

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