quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Ainda a campanha da ATEA: reclamação na Folha de S. Paulo

Pequena reclamação publicada na Folha de S. Paulo de hoje (negritado e em vermelho, lá embaixo):

São Paulo, quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
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PAINEL DO LEITOR

O "Painel do Leitor" recebe colaborações por e-mail (leitor@uol.com.br), fax (0/xx/11/3223-1644) e correio (al.Barão de Limeira, 425, 4º andar, São Paulo-SP, CEP 01202-900). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Folha se reserva o direito de publicar trechos.

Leia mais cartas na Folha Online
www.folha.com.br/paineldoleitor

Salários
O Brasil nunca sairá do Terceiro Mundo enquanto os políticos somente governarem em causa própria ("Câmara aprova aumento de salário do Executivo e Legislativo para R$ 26,7 mil",Folha.com, ontem). Isso é um espólio a todos nós, que lutamos, contribuímos com nossos impostos e tentamos viver com nossos salários, enquanto vemos as falhas na educação, na saúde e na segurança pública.
Com a aprovação do aumento, crescerá ainda mais a deficiência desses serviços, pois de onde sairão os recursos?
Se os senadores e o presidente tiverem consciência disso, não aprovarão esse projeto.
JONAS DE ANDRADE VILAS BOAS (Campinas, SP)


O Tiririca já teve a primeira lição do que faz um deputado federal: aumenta o próprio salário.
CARLOS GASPAR (São Paulo, SP)

Aborto
O governador Sérgio Cabral generaliza seu comportamento leviano ao perguntar "quem aqui não teve uma namoradinha que precisou abortar?". Não venha o trêfego governador justificar um comportamento seu no passado para pedir uma discussão sobre o que chama eufemisticamente de "interrupção de gestação".
O aborto, que a maioria da população brasileira rejeita em todas as pesquisas, é homicídio.
Não venha Cabral com uma argumentação inconsistente de "problema de saúde pública".
Problema de saúde pública é esquistossomose, malária, pelagra, subnutrição. É uma gestante de 19 anos peregrinar por vários hospitais no Rio e morrer sem ser atendida, como ocorreu há pouco. É a procura de um leito de CTI nos hospitais do Estado.
Como médico, protesto contra a leviandade com que esse assunto é tratado pelo governador.
HERBERT PRAXEDES (Niterói, RJ)

Contrastes
O Brasil realmente é o país dos contrastes, das dúvidas e das enganações, conforme se viu na reportagem "Seguro obrigatório de carros subirá até 15% em 2011" (Mercado, ontem).
Muito interessante esse aumento, já que os valores das indenizações pagas nos casos de morte, invalidez permanente e reembolso de despesas médicas em decorrência de acidentes de trânsito permanecerão inalterados.
IVO KUHN (Curitiba, PR)

CPMF
Onde foi parar o desconto da CPMF? Gostaria de saber, especialmente da Fiesp, quando, como e onde o valor da CPMF cortada contribuiu para baixar o preço dos produtos e serviços das empresas.
ELYANNE GUIMARÃES BRASIL (Belo Horizonte, SP)

WikiLeaks
A Força Aérea dos EUA bloqueou os sites de jornais para seu público interno ("Força Aérea dos EUA bloqueia sites que divulgaram documentos do WikiLeaks", Folha.com, 14/12).
Isso não configura censura à imprensa? Não é cerceamento à liberdade das pessoas em busca de notícias? Claro que sim! Então por que a nossa mídia não denuncia com destaque? Por que o ato vem dos EUA? Mas quando vem do Irã, de Cuba, da Rússia ou da Coreia do Norte toda a imprensa tupiniquim esbraveja histericamente.
JEFERSON MALAGUTI SOARES (Belo Horizonte, MG)

País do futebol
A coluna de Tostão de ontem estava um primor: usou o brado "Brasil, acorde!" para chamar a atenção dos dirigentes, da mídia esportiva e dos torcedores para a realidade do nosso futebol.
Há tempos deixamos de jogar o melhor futebol do mundo. No ranking da Fifa, ocupamos um modesto quarto lugar, e nossos melhores jogadores deixaram de figurar na lista dos premiáveis.
Por outro lado, ficamos encantados com jogadores que pedalam e fazem firulas e malabarismos sem, entretanto, atentarmos para a falta de objetividade dessas jogadas. Tais jogadores, quando vão jogar no exterior, acabam no banco de reservas.
Além disso, faltam-nos líderes no gramado. Que saudades de Zito, Didi, Gerson etc.
SIMÃO KORN (Santos, SP)

Ateus
Fernando de Barros e Silva ("Ateísmo e delírio", Opinião, 11/12) deve viver em outra realidade para afirmar que está confortável sendo membro da minoria brasileira que não acredita em deus.
O que se percebe com clareza, e a última eleição confirmou, é que não acreditar em deus no Brasil é motivo de preocupação para os não crentes, que são tachados de mentirosos a pessoas sem caráter (Datena), passando por torturadores (Frei Betto).
A campanha (censurada) da Atea não é obra de uma "igrejinha"; é uma necessidade social, política e intelectual contra os violentos obscurantismo e preconceito do Brasil.
GUSTAVO BISCAIA DE LACERDA, sociólogo da UFPR (Curitiba, PR)

"Cansamo-nos de agir
E até de pensar cansamos;
Só não cansamos de amar
E nem de dizer que amamos"

(Teixeira Mendes, a partir de Augusto Comte) http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/
http://membres.lycos.fr/clotilde/

[As partes desta mensagem que não continham texto foram removidas]

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Propaganda antecipada, cultura política e república

O texto abaixo foi publicado no jornal curitibano Gazeta do Povo de 20 de maio de 2010; pode ser consultado diretamente por aqui:

http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1004919&tit=Propaganda-antecipada-cultura-politica-e-republica

* * *

Três anos atrás, víamos que nos Estados Unidos a campanha eleitoral que escolheria o sucessor de George W. Bush iniciara-se mais de um ano e meio antes das eleições: já no Brasil a campanha só pode começar seis meses antes. Por que a diferença?

Nos dois países os valores em jogo são a consideração de que todos os cidadãos podem, em princípio, concorrer a todos os cargos em igualdade de condições e em ambientes livres (sem impedimentos socioinstitucionais). O que muda em cada caso é que nos Estados Unidos valoriza-se mais a liberdade de associar-se e difundir as ideias dos candidatos; no Brasil valoriza-se a igualdade de condições da disputa, procurando-se evitar que o poder econômico de alguns ponha em desvantagem os economicamente menos privilegiados, mas cuja participação, pelo simples fato de serem cidadãos, é considerada tão importante quanto a dos demais.

Não vem ao caso tratar do acerto da escolha brasileira: aceitemo-la e consideremos o que se pratica no país. O que se pratica? A afir­­ma­­ção despudorada, ainda que cautelosa, da força do poder políti­­co e não do poder econômico: são os grupos no poder que têm maior possibilidade de propaganda antecipada, transformando a administração pública em palanques eleitorais em nome do “povo” (Mas não consideramos aqui que os programas sociais em voga são “eleitoreiros”: afinal, o Brasil apresenta problemas sociais muito sérios, que exigem atitudes que se dirijam diretamente aos grupos excluídos; é natural que os políticos que satisfaçam essas necessidades terão apoio popular).

O que interessa aqui é o seguinte: o desrespeito à legislação que proíbe a propaganda antecipada afeta de que maneira a cultura política brasileira? A resposta direta é: esse desrespeito fragiliza a nossa “república”; essa fragilização não é somente uma consequência indireta, mas também é um resultado intencional de vários políticos.

Enquanto a democracia pode ser definida grosso modo como a afirmação da “soberania popular”, a república pode ser entendida como o conjunto de instituições políticas que organiza os cidadãos em sua vida coletiva. Essas instituições têm de ser legítimas, isto é, consideradas aceitáveis e representativas da vontade do conjunto dos cidadãos; além disso, elas têm de ser minimamente eficazes, no sentido de que consigam identificar as demandas sociais e dar soluções para elas.

Ora, o que se vê é que o desdém pelas instituições políticas brasileiras é cada vez mais a regra, mesmo apesar do afirmado apoio de vários grupos e partidos políticos às instituições republicanas. Na verdade, pode-se considerar com seriedade que esse apoio é a compensação retórica para o desrespeito prático. Daí se desenvolve um sistema de hipocrisia que a população reconhece com facilidade: não são casuais o desânimo e a apatia políticos manifestados atualmente.

O problema vai além, pois as outras instituições responsáveis pela saúde política da república, ou são omissas ou, quando fiscalizam, são mais e mais achincalhadas. Os exemplos mais dramáticos são a imprensa, o Tribunal Superior Eleitoral e o Ministério Público: de maneira hipócrita e demagógica, todas as investigações que tais órgãos fizeram nos últimos meses foram desqualificadas, ridicularizadas e afirmadas como “perseguição partidária”. O mais clamoroso exemplo, para o que nos interessa, é o desdém do presidente Lula às (raras) multas que o TSE aplicou-lhe pelo desavergonhado uso eleitoral da propaganda institucional.

Repitamos: esse desrespeito sistemático tem efeitos na cultura política nacional, no sentido de estimular a apatia. Para evitar isso, a vida política tem de ser entendida como mais ampla que a atividade partidária, incluindo principalmente o controle do público sobre o Estado. Assim, o apoio popular às investigações do Ministério Público e à cobrança de que o TSE multe com rigor as propagandas eleitorais antecipadas é uma forma republicana e efetiva de participação política.

Criticidade de manual

Artigo publicado em 31.5.2010, na Gazeta do Povo (Curitiba, n. 29 421, p. 2); http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1008858&tit=Criticidade-de-manual

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Criticidade de manual


Na realidade pedagógica brasileira inúmeros temas são tratados de maneira rasteira, estereotipada e baseada em interesses facciosos.

A recente introdução da Sociologia no ensino médio, embora segundo alguns seja um avanço para a “reflexão social crítica”, também apresenta um sério risco de criar distorções intelectuais e políticas. A Sociologia, ao contrário de outras disciplinas, como a Matemática ou a Biologia, trata diretamente da organização da nossa sociedade; o que se ensinar em suas aulas terá consequências claras, embora não mecânicas nem imediatas, para a vida coletiva. Dessa forma, problemas em seu ensino resultam em sérios problemas sociais.

Deixemos claro, antes de mais nada, que não advogamos uma ciência “neutra”, asséptica, que se encastele nos bancos escolares e que, no fundo, não tenha serventia social alguma: o que nos preocupa, ao contrário, é que essa disciplina sirva para difundir preconceitos interessados, à direita e/ou à esquerda, isto é, dos marxistas, dos liberais ou dos católicos. Ao difundir preconceitos teóricos, essa disciplina pode legitimar perspectivas e rejeitar outras, ao sabor das conveniências e dos interesses.

Não afirmo que isso seja a regra: mas, por um lado, a implantação da Sociologia no ensino médio está apenas no início (ou seja, há tempo de sobra para tais distorções firmarem-se). Por outro lado, já temos à disposição exemplos clamorosos que confirmam os temores: basta ver a proposta de diretrizes para Sociologia do estado do Rio de Janeiro (cf. aqui: http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=1587〈=pt-br).

Vejamos outro exemplo, mais sutil e, por isso, mais daninho. No vestibular da Universidade Estadual de Maringá (UEM) de 2009, víamos a seguinte questão na prova de Sociologia: “Sobre o tema conflito social, assinale o que for correto”; entre as várias opções, havia a seguinte: “08) Auguste Comte define o conflito como propulsor da mudança social em direção ao Estado positivo”. O formulador da prova considerava que essa afirmação está errada – mas, ao contrário do afirmado pelos preconceitos (interessados ou não) e repetido pelos manuais, isso é incorreto.

A perspectiva-padrão (e única) dos manuais é que a teoria comtiana é a favor do “consenso”, a partir de um organicismo, em que todos os indivíduos e instituições têm de ser pacíficos e obedientes à ordem social vigente; assim, ele seria o arquiconservador, a que se deve opor o “progressivismo” da revolução e dos “conflitos”. Ora, deixando de lado a ideologia partidária implícita nessa visão, o fato é que – como minha tese de doutorado em Sociologia Política foi, precisamente, sobre a teoria sociopolítica de Augusto Comte – posso afirmar com segurança que essa teoria não é 1) contra o “conflito”, 2) nem organicista, 3) nem a favor do status quo 4) nem “conservadora”.

Recentemente, colaborei na elaboração da apostila do Colégio Positivo para a disciplina de Sociologia no ensino médio, redigindo a parte relativa a Comte: sem dúvida que abordei o tema acima. Todavia, essa é apenas uma única apostila – mesmo que seja uma apostila adotada em centenas de escolas Brasil afora –; outra coisa é a realidade pedagógica brasileira, em que inúmeros temas são tratados de maneira rasteira, estereotipada e, como vimos, baseada em interesses facciosos; ainda outra coisa é a realidade dos vestibulares, que seguem os mesmos preconceitos e erros, seja voluntariamente, seja involuntariamente.

Como dissemos há pouco, o exemplo acima é sutil, mas seus efeitos intelectuais e práticos não o são. O resultado disso tudo é desastroso sob qualquer perspectiva: os alunos dos manuais são deseducados, os vestibulares incentivam o erro e, no meio do caminho, quem aprender corretamente os conceitos sociológicos poderá ser apenado devido aos estereótipos acadêmicos e políticos.

Passos longos do gigante

Entrevista publicada no dia 27.6.2010, na Gazeta do Povo (Curitiba):

Mundo

Segunda-feira, 28/06/2010

Diplomacia

Os passos (muito) longos do gigante

Brasil se mostra reticente em tomar partido nos conflitos regionais sul-americanos, mas se expõe em questões distantes

Publicado em 27/06/2010 | Osny Tavares

A lenda da “Bota de Sete Léguas” é uma das mais conhecidas do folclore europeu. Segundo a tradição oral, há um par de botas mágicas que dá àquele que as veste a possibilidade de, em um único passo, percorrer a distância que dá nome ao calçado, o equivalente a 45 quilômetros. O que aparenta ser uma grande vantagem para o caminhante se torna, aos poucos, motivo de frustração. Em um único passo, o usuário das botas pula de uma cidade a outra, e se torna impossível para ele conhecer o local a contento. A menos que as descalce, é claro.

O Itamaraty parece ter calçado a bota das sete léguas diplomáticas antes de sair pelo mundo atuando nos conflitos internacionais. Ao mesmo tempo em que faz lances pouco arriscados em imbróglios entre vizinhos sul-americanos, o Brasil se compromete e se alinha em questões distantes, que não se refletem diretamente nos problemas do país.

Do outro lado da fronteira amazônica, por exemplo, a relação política entre Colômbia e Venezuela é instável ao menos desde 2008, quando uma operação militar colombiana no Equa­­dor matou um líder das Forças Armadas Revolucionárias da Co­­lômbia (Farc). O governo Chá­­vez acusa a Colômbia de “invasão do território” de seu aliado, e fez vários desagravos públicos a Bogotá. Instado a mediar o conflito, o Brasil pôs panos quentes na possibilidade de haver um conflito armado entre os dois paí­­ses. Porém não mediou negociações para uma reconciliação definitiva – como chegou a ser sugerido por analistas internacio­­nais – nem se alinhou a qualquer uma das partes, resistindo aos pe­­didos de apoio dos dois países.

A mesma moderação não é identificada na posição brasileira em relação ao polêmico programa nuclear iraniano, que o Conselho de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas (ONU) acredita ser militarista. O governo em Teerã, há 15 mil quilômetros de Brasília, contou com os apoios brasileiro e turco du­­rante a votação de sanções ao país persa. Brasil e Turquia, mem­­bros rotativos do CS, foram os únicos a votar contra a imposição de restrições comerciais ao governo Ahmadinejad. O alinhamento pró-Irã foi criticado pela secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, para quem há “divergências muito sérias” entre Brasil e Estados Unidos em relação ao país.

Na avaliação de Jorge Fon­­toura, doutor em Direito Inter­­nacional e professor do Instituto Rio Branco, as escolhas brasileiras em sua política internacional estão de acordo com a linha ideológica da cúpula do governo brasileiro. “Na política nacional, o executivo faz um governo de coabitação entre os partidos, mas na política externa segue suas convicções ideológicas”, analisa.

Porém nos esboços de divisão entre esquerda e direita presentes na América do Sul, o Brasil não está assumindo posições com a mesma paixão, concorda Fontoura. “No continente, o Bra­­sil tem responsabilidades mais evidentes. Mesmo com países como Bolívia e Venezuela, que parecem ter mais sintonia com o nosso governo, a relação é am­­bígua. Não há condenação ou apoio a estes governos”, avalia, apontando questões econômicas como principal motivo do distanciamento: “O Brasil não pode se associar diretamente a países com democracias problemáticas porque é o maior receptor de investimentos do bloco sul-americano – e investidores temem ameaças à democracia”.

No entanto, para Gustavo Bis­­caia de Lacerda, sociólogo e cientista político da Universidade Fe­­deral do Paraná (UFPR), a escolha brasileira é, sobretudo, impulsionada pelo momento atual da geopolítica global. “Há dois anos ou mais o Brasil esteve profundamente envolvido em questões latino-americanas. Como essas questões foram mais ou menos solucionadas, passa-se para um novo momento. Ao mesmo tempo, o Brasil de Lula e Celso Amo­­rim tem ambições mundiais, daí a participação nas negociações com o Irã. Não creio que haja uma inversão de prioridades. Haveria tal inversão se, em vez de desenvolvermos o presente ativismo, adotássemos, por exemplo, um perfil mais comercial e menos político”, relaciona.

No passo longo da diplomacia brasileira, Lacerda reconhece diferenças em relação ao comportamento dos principais atores internacionais da atualidade. “O Brasil é uma potência econômica e diplomática com legitimidade e capacidade de articulação política, mas não temos os demais atributos das demais potências, em particular os efetivos militares. Isso aumenta nossa legitimidade nos foros internacionais”, prevê.

Importância regional

Mesmo que o Brasil seja alçado ao nível das grandes influências políticas internacionais, a Amé­­rica do Sul continuará sendo uma região de importância fundamental para o bem-estar político e econômico do país, concordam os especialistas ouvidos pela reportagem. “Há uma relação de simbiose na região. O Brasil é o fiador do sucesso do continente, e se a América Latina estiver bem o Brasil também estará”, prevê Fontoura.

Biscaia de Lacerda corrobora a análise de correlação: “Os problemas regionais sempre nos afetarão, seja devido às questões de segurança – como uma guerra civil na Colômbia ou problemas sociais, políticos e econômicos no Paraguai, na Bolívia, na Vene­­zuela e, em menor escala, na Argentina – seja devido ao “efeito de demonstração”. Se o Brasil não consegue apaziguar ou manter o seu entorno em relativa paz, como pretende interferir nas grandes questões mundiais?”, indaga.

Nesse campo minado, contudo, é importante para o Brasil não passar a falsa imagem de país imperialista. “Hoje, o capital brasileiro tem inserção internacional e o empresário brasileiro atua agressivamente. O Brasil precisa ser sábio com seus vizinhos para não criar a pecha de arrogante”, recomenda Fontoura.

“Convém notar que estamos em uma situação internacional de destaque não somente porque nos esforçamos e sacrificamos para isso, mas também porque houve um declínio relativo de outras grandes potências”, ressalta Biscaia de Lacerda. “Embora estejamos agora em uma situação melhor do já estivemos, não temos condições de financiar qualquer outro ativismo internacional que não seja o das negociações”.

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Ficha limpa, exceções e satisfação pública

Artigo publicado na Gazeta do Povo, em 15.8.2010:

http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?id=1035872


Ficha limpa, exceções e satisfação pública

Publicado em 15/08/2010 | Gustavo Biscaia de Lacerda

Embora vários críticos da Lei da Ficha Limpa tenham afir­­mado que se trata de uma proposta demagógica, é difícil não ver nela um instrumento simples e poderoso para que a qualidade moral e política dos candidatos seja mantida ou aumentada

Uma das palavras mais interessantes – e mais difíceis de traduzir – que a Ciência Política anglossaxã apresentou ao mundo é accountability. Em linhas gerais, ela corresponde à prestação pública e política de contas: não no sentido contábil ou financeiro, mas no de “dar satisfação”. Se um político – ou qualquer servidor público, ou mesmo qualquer indivíduo – assume publicamente compromissos, é investido de responsabilidade e obtém determinados poderes para cumprir o que prometeu e realizar as atividades inerentes à função. A contrapartida desses privilégios é satisfazer necessidades sociais e dar satisfação ao conjunto da sociedade do que fez e do que não fez: isso é accountability.

Deixemos de lado as várias possibilidades sociais e institucionais da accountability e concentremo-nos em outra questão: a prestação de contas no caso dos políticos não é apenas pelas promessas feitas (cumpridas ou não), mas também pelo comportamento de cada político face às instituições públicas: cada político age de modo a reforçar a importância das leis e sua justiça? As liberdades públicas são respeitadas e reforçadas? Há um ambiente social de verdadeira participação na vida pública e de promoção do bem comum? Ou, ao contrário, tem-se a sensação de desrespeito ao bem comum, de leis parciais e particularistas, de comportamentos predatórios?

A teoria atualmente aceita a respeito da representação política e das eleições estabelece que a sociedade escolhe com liberdade e, supostamente, com conhecimento de causa os candidatos que mais satisfazem as aspirações de grupos e indivíduos. De acordo com essa doutrina, os políticos sérios e “representativos” são eleitos e reeleitos, ao passo que os que não cumprem suas funções não obtêm a reeleição: essa é uma forma indireta de realizar-se a accountability.

Entretanto, por diversas razões, a qualidade política e até moral dos candidatos nas últimas décadas tem-se revelado baixa, em particular com postulantes que veem na representação uma forma de enriquecimento ou de obterem imunidade jurídica face a crimes diversos, em vez da realização de uma função pública, mesmo a despeito de uma suposta seleção feita pelos partidos políticos. Em tais casos, o descompasso entre a teoria da accountability eleitoral e a realidade social é gritante, pois inúmeros políticos vinculados diretamente ou indiretamente a crimes de diferentes espécies são eleitos e reeleitos: para minorar esses (d)efeitos, promulgou-se neste ano a lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n.º 135/2010), que impede que políticos condenados por diversas modalidades de corrupção candidatem-se a cargos públicos.

Embora vários críticos dessa lei tenham afirmado que se trata de uma proposta “demagógica” e “hipócrita”, é difícil não ver nela um instrumento simples e poderoso para que a qualidade moral e política dos candidatos seja mantida ou aumentada. Minará a autonomia dos partidos? Isso é discutível, mas é ainda mais discutível o tipo de autonomia defendida para que os partidos apresentem candidatos com problemas na Justiça. A sociedade pode e deve escolher sozinha seus candidatos? Sim, sem dúvida, mas é sabido que o voto com “conhecimento de causa” é difícil e que o “bem comum”, embora seja fundamental na vida pública, é uma categoria por vezes demais distante das preocupações dos cidadãos.

A lei da “ficha limpa” veio em boa hora: na verdade, demorou. Assim, todas as exceções que a Justiça (comum ou eleitoral) estabelece a essa lei servem para apenas um resultado: para diminuir a qualidade da votação e para degradar a República.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e professor da UTP. E-mail: GBLacerda@ufpr.br

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Véu, liberdade e República

O texto abaixo foi publicado no jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, no dia 7 de outubro de 2010; está disponível no seguinte endereço:


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A questão “quais as liberdades mais básicas?” tem várias respostas, duas das quais seriam: 1) isso não faz sentido, pois 2) não há liberdades “mais básicas”. Discordamos dessas respostas: há, sim, liberdades mais básicas, que constituem os fundamentos de todas as outras. Quais seriam elas? Liberdades de pensamento, de expressão, de associação e de ir e vir. Não que outras liberdades não sejam importantes, mas essas quatro, que garantem aos indivíduos e aos grupos as condições mínimas para terem e exercerem a autonomia decisória, permitem que todas as demais sejam discutidas e estabelecidas, além de terem valor em si mesmas como valores políticos e sociais.

Pois bem: há algumas semanas aprovou-se na Fran ça uma lei que veda aos muçulmanos, em especial às muçulmanas, o uso de véus, burcas e adereços que cubram parcial ou totalmente seus rostos e que se jam a manifestação de suas crenças religiosas. O ar gu mento oficial apresentado é que tais adereços consis tem em instrumentos, implícitos ou explícitos, da do minação social e masculina sobre as mulheres, subjugando-as e relegando-as a uma posição social não in ferior, mas secundária; em outras palavras, tais adereços seriam instrumentos e símbolos da degradação das muçulmanas como cidadãs e como seres humanos.

Essa justificativa merece, sem dúvida, a mais profunda reflexão, pois enfatiza aspectos centrais para o projeto republicano perfilhado pelo Ocidente des de há pelo menos 200 anos, começando pela própria França: respeito universal aos seres humanos, capacidade de manifestação individual e coletiva, integração à vida coletiva de todos como cidadãos.

Todavia, essa mesma justificativa resulta na negação da autonomia individual para escolher as crenças; em nome do respeito ao pluralismo religioso, ataca-se os fundamentos desse pluralismo. É uma situação contraditória, cuja solução passa necessariamente pelo reafirmar do respeito ao pluralismo, ou melhor, do insistir em que as liberdades de pensamento e de expressão de fato são fundamentais e como tais devem ser tratadas.

No caso específico das muçulmanas francesas, é evidente que seu status social e político não pode ser o mesmo que o de muçulmanas de outros países: o uso dos adereços deve corresponder à manifestação externa de valores e escolhas íntimas, isto é, pessoais; dessa forma, elas são antes cidadãs (francesas) e depois, ou como que “por acaso”, muçulmanas e não o contrário (ou seja, antes muçulmanas e depois, “por acaso”, francesas). Dessa forma, respeitam-se os valores pessoais das muçulmanas (e, de modo geral, dos muçulmanos) tanto quanto respeitam-se os valores pessoais e as manifestações exteriores das crenças de judeus, cristãos, ateus, agnósticos, budistas etc. – além de reafirmar-se o republicanismo francês, que de maneira correta estipula o universalismo jurídico no lugar do comunitarismo.

Voltemos à justificativa oficial: o repúdio à expressão pública do que seria a submissão e a degradação das mulheres muçulmanas dirige-se, como se percebe com facilidade, a apenas um único grupo. Assim, embora o argumento em si seja moral e politicamente digno de consideração, ele é particularista e dirigido contra uma fé específica. Dessa forma, ele consiste mais em uma renovada expressão de islamofobia que na defesa do republicanismo. O argumento tem um inequívoco caráter ad hoc, elaborado de maneira casuística, para dar um lustro intelectual a uma forma de intolerância.

Para concluir: o que isso tem a ver com o Brasil? Ora, tudo. Não apenas porque os laços políticos, so ciais e econômicos entre Brasil, de um lado, e França e países islâmicos, de outro lado, têm crescido, como porque os valores políticos e sociais brasileiros são muito próximos dos da França – de modo que o problema criado e enfrentado pela França refere-se também a dilemas brasileiros.